capa da 1ª edição de "O Motim" de Miguel Franco
com ilustração de Francisco Relógio
“Mas eu não quis só fazer um drama, sim um drama de
outro drama, e ressuscitar Gil Vicente a ver se ressuscitava o
teatro” Almeida Garrett (Prefácio à primeira edição de Um
auto de Gil Vicente)
.
O Castelo de Leiria foi construído por D. Afonso Henriques como ponto estratégico na luta
contra os mouros. Tomado pelos exércitos árabes por duas vezes, em ambas foi reconquistado de
volta às linhas cristãs.
Convocadas por D. Afonso III, em 1254, foram lá reunidas as cortes que, pela primeira vez,
congregaram nobreza, clero e povo, possibilitando a participação da classe até então calada nas
decisões reais. O advento das cortes de Leiria seria conhecido posteriormente como o momento de criação do parlamento nacional português.
Durante o reinado de D. Dinis, o rei trovador, serviu de palácio real por diversas ocasiões e,
em meados de 1300, acabou sendo doado, junto com toda a povoação, à rainha santa Isabel, que
passou a morar no castelo e lá criou o herdeiro do trono, o jovem Afonso, futuro Afonso IV de
Portugal, o Bravo, tido como o primeiro grande financiador das explorações atlânticas.
Foi nesse espaço histórico e emblemático que, em junho de 1957, um ator representando o
papel de Gil Vicente dirige-se à “corte” antes da encenação de sua peça A Farsa de Inês Pereira.
Muito respeitosamente e à maneira vicentina, estando já pronto para assumir o papel de Pero
Marques, ele explica ao público o enredo da farsa que se apresentará. Esse ator era Miguel Carlos Franco, também autor do Prólogo que a personagem recitara. Dava-se ali a estreia de um texto da
lavra do autor. A mesma peça, também precedida pelo Prólogo[1], foi montada nos anos seguintes,
igualmente em espaços históricos. Em 1959, esteve nos claustros do mosteiro de Alcobaça e, em
1961, no Convento de Tomar.
Esse tipo de montagem, de uma peça teatral em espaço histórico, apesar de ser evento muito
frequente em terras portuguesas, parece ser representativo da trajetória da obra de Miguel Franco, pois a história de Portugal, em seus eventos e com suas personagens, são a maior fonte em que se alimenta a dramaturgia do autor. No Prólogo, ele encarna o pai do teatro português. Em sua grande obra, O Motim, é vemos a revolta do povo do Porto contra a criação da Companhia de Vinhos do Alto Douro. As personagens de A Legenda do cidadão Miguel Lino anseiam pela chegada das tropas francesas como libertadoras, durante a primeira invasão do século XVIII. Percebe-se claramente a história do país como a sua grande motivação dramática, embora haja alguns trabalhos seus fora desse domínio[2].
Além do exposto, há outro elemento caracterizador desse dramaturgo e ator, que seria a sua
intensa participação cultural e política.
Grande motivador cultural da cidade de Leiria, Miguel Franco foi o fundador, em 1950, do
Grupo de Teatro Miguel Leitão cujas atividades acabam por transcender a sua cidade natal com
duas participações bem-sucedidas nos concursos promovidos pelo Secretariado Nacional de
Informação. A primeira, em 21 de setembro de 1959, leva ao palco a peça Tá-Mar, de Alfredo
Cortez, que conta a história de pescadores da Nazaré. Nessa ocasião, o Grupo consegue, além do
prêmio de Melhor Drama ou Tragédia, o de melhor ensaiador para Miguel Franco. Dois anos
depois, agora no Teatro da Trindade, em Lisboa, em 24 de Setembro de 1961, com a montagem da Farsa de Inês Pereira, antecedida mais uma vez pelo Prólogo do autor, alcança-se o prémio de
melhor comédia ou farsa, além do segundo lugar para Miguel Franco novamente como melhor
ensaiador.
De volta a Leiria, os atores do grupo foram tratados como grandes estrelas. A conquista foi
fortemente sentida pela sociedade leiriense, fato que pode ser tomado como um grande motivador das manifestações culturais da cidade.
Podemos dizer que a aparição do grupo é um dos pontos altos da história do teatro de Leiria.
Já desde o nome da trupe, que homenageia importante figura do teatro leiriense, vê-se o intuito, não de criar uma manifestação nova, mas sim de ligar-se a uma tradição regional e nacional que deveria ser, na opinião de Franco, mais arrojadamente cultivada.
Miguel Joaquim Leitão, que dá nome ao grupo teatral fundado por Franco, nasceu em Leiria,
em 1815, e foi diretor do Teatro São Pedro, assim como proprietário do camarote número 1 da casa
de espetáculos. Pouca documentação existe sobre as peças que teriam sido lá encenadas e os que
foram conservados referem-se apenas a “espetáculos de declamações”. Sabemos, por outro lado,
que são vários os espaços dedicados à atividade. Além do já citado, havia o Teatro do Relego, o da
Palha e do Farelo (ou do Sebo), conforme estudo de João Cabral[3] sobre o Teatro Amador em
Leiria.
A primeira grande intervenção de Miguel Leitão teria sido a proposta de construção do
Teatro Dona Maria Pia, devido ao mau estado de conservação do Teatro São Pedro. Neste último, o
que é também indicativo de uma razoável atividade teatral na cidade, desenvolveram-se as
Sociedades Dramáticas de Leiria e a Sociedade Dramática Recreativa Leiriense.
A partir do ano de 1897, surge o Grupo Dramático Leiriense e a ele sucedem-se diversos
outros grupos teatrais amadores até a década de 1940.
Até que, em 1950, como já foi dito, é fundado o Grupo que será dirigido por Miguel Franco
e que fará, em suas primeiras encenações, mira na recuperação dos clássicos vicentinos. Franco e o grupo realizam diversas apresentações pelo país, procurando sempre os espaços abertos e/ou
históricos para suas montagens. Miguel Franco e o grupo sentem efetivamente pela primeira vez o peso das relações do mundo artístico com o regime salazarista e sua atuação censória ao tentarem encenar a peça O Duelo, de Bernardo Santareno. Estando já com a cenografia e os figurinos completos e pronta para ir à cena, volta o requerimento de apresentação com a negativa da censura. A montagem é proibida antes de sua estreia e nunca irá ao palco com o Grupo Miguel Leitão.
Ainda jovem, Miguel Franco assumiu cargo diretivo do Ateneu Desportivo de Leiria,
associação a que levaria personalidades importantes da cultura e da literatura portuguesa. Nos
eventos, chamados de “Conversas de Sexta-Feira à noite”, estiveram ministrando palestras, além de Bernardo Santareno, amigo pessoal de Franco, Rogério Paulo, Luis Francisco Rebello e Vitorino Nemésio.
Mais tarde, já em 1972, viria a organizar também os “Festivais de Artes de Leiria”, cujo
ponto alto seria a montagem do encenador brasileiro Luiz Tito para a tragédia de Ésquilo, Os
Persas, mais uma vez no Castelo de Leiria.
Enfim, resumindo o que se apresentou até aqui, um agitador cultural. Homem alegre,descontraído e espontâneo no convívio, mas rigoroso em seu trabalho, tinha uma concepção de teatro como algo que não se pode distanciar de uma atitude quase instintiva de escrever e de
encenar. Definia-se como alheio a frases preconcebidas, alinhadas e de efeitos empolgantes. Falava de teatro como de uma necessidade, como um imperativo de todos os homens em torno da comunicação. Possivelmente, toda a experiência que tinha com as teorias teatrais, até então, vinha da prática de ator e do contato com outros encenadores por quem foi dirigido nas inúmeras
montagens teatrais de que participou quando jovem. Não obstante isso, mais tarde, como veremos
em momento oportuno, uma de suas obras traz uma citação do Teatro político, de Erwin Piscator.
Concebia sua relação com o teatro como um impulso, como uma possessão.
Dessa aptidão, que nasce para unir o teatro ao desejo de esclarecimento e de comunicação
inerente aos homens, vem a relação também com a história. Miguel Franco tenciona a percepção do fato histórico como um acidente que deixará sempre marcas nas sociedades vindouras, no
comportamento humano e nas instituições e, talvez por esse motivo, valha a pena ser revisitado.
Além disso, acreditava que a arte deveria estar continuamente próxima do povo. Sempre
insatisfeito, julgava que o teatro deveria ir à busca do público, organizando espetáculos que fossem, ao mesmo tempo, de entendimento popular, mas que também operassem como ferramenta para elevar a um outro patamar a sua percepção. Ou seja, um teatro que fosse um instrumento didático, função maior do gênero para o autor. Crítico contumaz do alargado distanciamento que se faz entre intelectuais e povo, Franco descrevia a população portuguesa como uma multidão cada vez mais distanciada e perdida daqueles que a deviam conduzir. E, ainda segundo ele, como a culpa nunca era do povo, a missão de resgate e reconciliação era dos intelectuais e dos homens da cultura.
Como se pode perceber, um posicionamento, em relação à educação cultural do povo, muito
semelhante à de Lênin. O líder comunista sustentava que o verdadeiro conhecimento precisa ser
ensinado ao proletário pelos intelectuais revolucionários, ao contrário de outros pensadores
marxistas, como Lukács por exemplo, que acreditava ser possível o aparecimento de uma
verdadeira consciência dentro da própria trabalhadora (FREDERICO, 1997).
Com todos esses elementos em mente, nasce a sua maior e mais controversa obra, O Motim,
baseado nos episódios da criação da Companhia de Vinhos do Alto Douro.
No dia 2 de dezembro de 1964, o Teatro Nacional D. Maria II[4] é consumido por um
incêndio de grandes proporções. Inutilizado pelo fogo, o teatro é abandonado pela Companhia
Amélia Rey Colaço–Robles Monteiro que prevê a estreia da temporada de 1965 para Fevereiro,
agora no Teatro Avenida.
O prédio do Avenida é reformado e recebe elogios por parte da imprensa especializada da
época. Uma sala de espetáculos confortável e bem decorada, vigiada pelo busto de Almeida Garrett, que o incêndio do Nacional não conseguira consumir, onde se lia uma faixa com a afirmação: “O Nacional continua”.
Escolheu-se um original português para a abertura da temporada. O primeiro aprovado pelo
Conselho de Leitura do Teatro Nacional foi a peça tida como estreia profissional do dramaturgo
Miguel Franco, já conhecido pelos lisboetas devido às passagens pela cidade com o teatro amador.
Faz-se a noite de abertura em um sábado, 6 de Fevereiro de 1965. Dirigido por Pedro
Lemos, com figurinos e cenários de José Barbosa e com os principais atores da Companhia
Nacional, além da numerosa figuração requerida pelo texto, sobe ao palco o primeiro trabalho
profissional de Miguel Franco nos teatros da capital do país.
Para a estreia da temporada, estavam presentes importantes homens do governo português,
posto que fosse este um dos grandes responsáveis pelo financiamento da reforma do Teatro
Avenida. Via-se na plateia, além do presidente Américo Tomás[5] e sua esposa, os ministros da
Educação Nacional e das Corporações e ainda aquele que seria, futuramente, o sucessor político de Oliveira Salazar, o professor Marcello Caetano.
Lida a efeméride que abre o texto de Franco, a ação da peça transcorre em três atos bastante
delimitados no que toca ao enredo. Em um primeiro, apresentam-se as personagens e os conflitos
principais. Algumas personagens fazem a descrição do que teria sido o motim, que acabara de
ocorrer, pelo ponto de vista das personagens das classes mais baixas e dos comerciantes do Porto. O clima é de festa, pois até o momento o povo parece ter conseguido o que queria, o fim do
monopólio da Companhia sobre a venda dos vinhos produzidos pelos vinicultores da região.
No segundo ato, começam as consequências pelo levante. Por ordem de Sebastião José de
Carvalho, está instalada uma alçada no Porto para interrogatório e julgamento dos amotinados. Há uma grande centralização do poder nas mãos do cruel escrivão José Mascarenhas, filho do
presidente do tribunal, João Pacheco Pereira Vasconcelos. Alguns acusados são interrogados de
forma brutal e outros são mesmo torturados.
No terceiro e último ato, os condenados aguardam a execução e o clima, lúgubre e funesto,
em nada mais lembra os festivos homens do primeiro ato. São feitas referências a um “mundo ao
contrário” e ao homem como “coisa com razão”, assim como ao destino dos que não se sujeitam ao poder totalitário. A peça termina com uma espécie de aforismo, que conclama a resistência: “Um homem sem medo não morre!” (FRANCO, 1965, p. 142).
No dia posterior, os jornais fizeram extensa louvação às performances dos atores, do
encenador e ao texto de Miguel Franco, que foi chamado ao palco e recebeu os aplausos junto com a direção da companhia, na pessoa de Amélia Rey Colaço. Entre os atores mais citados pelas
colunas dedicadas ao teatro dos periódicos estão Raul de Carvalho, como Tomas Pinto “cheio de
vibração e de grandeza de alma”; Varela Silva, como a “violenta personagem do Dr. José
Mascarenhas” ; Manuel Correia, como o Profeta, “um velho ébrio cheio de humanidade”; e, o mais enaltecido, Canto e Castro, como o Advogado Nicolau Araújo, que chega a ser aplaudido em cena aberta.
Ressalvando-se algumas críticas à “tessitura dramática” ou à encenação de Pedro Lemos, as
expressões são uniformes em transmitir o êxito da apresentação. “Uma noite para entrar para a
história do teatro” e “aplauso unânime”, pelo Diário da Manhã. Um evento “destinado a um
grande êxito de bilheteria”, conforme o Diário de Lisboa. Na coluna “Teatro Português”, descrevese a apresentação como um “conjunto muito elevado”, que mereceu “muitos e demorados aplausos”. Alguns dias depois, Antonio Augusto Menano, em sua coluna “Leitura de Teatro”, no Jornal de Notícias, da cidade do Porto concede a Miguel Franco “um lugar na primeira fila dos nossos dramaturgos contemporâneos”.
J. Reis, na coluna “Primeiras Representações”, elogia como “um espetáculo digno; (que)
certamente vai chamar público novo ao Avenida e agradar aos habituais frequentadores”. Em outra das colunas, o jornalista divulga: “O Motim representa-se todas as noites às 21 e 45, realizando-se no sábado a primeira tarde a preços reduzidos”.
No entanto, nem essa próxima apresentação, prometida a preços módicos, chegou a ser feita,
nem o “novo público” teve muitas oportunidades de ver a peça, pois, quatro dias depois, as
apresentações foram brutalmente suspensas.
Tempos depois, um bilheteiro do teatro Avenida contaria a Miguel Franco que, ao fim do
espetáculo, o Presidente Tomás e os ministros de estado desciam a estreita escadaria que vinha dos camarotes quando Marcello Caetano disparou: “Então agora o governo subsidia motins?!”.
Às 14 horas do que seria o quinto dia de apresentações, sob o testemunho de atores que
chegavam ao trabalho e de espectadores que aguardavam a abertura das bilheterias, a P.I.D.E.
invadiu a casa de espetáculos, intimou os bilheteiros a suspenderem a abertura dos guichês, rasgou e confiscou os cartazes da peça.
Tornava-se claro que o conflito do tempo histórico da peça acabava por desvelar outros
conflitos que, mesmo estando parcialmente sufocados, fremiam por vir à superfície. Forçoso dizer
que os interrogatórios conduzidos pelo desumano escrivão da alçada assemelhavam-se por demasia aos atrozes inquéritos da P.I.D.E., assim como a situação da população portuense do século XVIII, calada pelos emissários de Sebastião de Carvalho, aproximava-se muito da situação vivida pela plateia portuguesa na segunda metade do século XX.
Já de volta a casa, Miguel Franco recebe o telefonema da empresária do Nacional que
solicitava sua presença com urgência em Lisboa, para tentar, junto às instâncias oficiais, remediar a proibição. Porém, os mecanismos da censura estavam em desacordo. A peça, apesar de ter sido aprovada pelo Conselho de Leitura do Teatro Nacional, órgão independente da censura, estava agora proibida pela Censura Teatral e nada a faria voltar ao palco do Nacional ou do Avenida. Caia então, pela segunda vez e mais pesadamente, a repressão sobre a arte de Miguel Franco. O próprio teatro foi fechado, sob o pretexto de que faltava ainda concluir as obras, e O Motim não mais voltaria ao Avenida.
A proibição foi profundamente sentida também pelos homens da cultura e da resistência ao
totalitarismo salazarista. Um protesto por escrito é dirigido ao Ministro da Educação Nacional, em que, citando Almeida Garrett, afirma-se o teatro como índice do nível cultural de um povo e pede-se a “imediata abolição das restrições que pesam sobre Teatro Português” (Rebello, 1977, p. 162).
Assinam o protesto mais de cem pessoas e entre os nomes mais conhecidos estão os de Luiz
Francisco Rebello, Sttau Monteiro, Bernardo Santareno, José Cardoso Pires, Alves Redol, Rogério Paulo, Romeu Correia, Mário Soares, Natália Correia, Sophia de Melo Breyner Andresen, Álvaro
Salema, Maria Teresa Horta, João Gaspar Simões, Alexandre Pinheiro Torres, Carlos de Oliveira,
além do próprio Franco[6].
Nesse mesmo ano, a SPA foi fechada e teve a sua sede depredada pela P.I.D.E. por atribuir a
José Luandino Vieira escritor e ativista angolano, preso em Cabo Verde, o Prêmio Camilo Castelo
Branco.
Dias depois, no periódico Correio de Nisa, Ruy Miguel fala em sua crônica, não mais sobre
a peça, mas sobre o texto de Franco. Era fato prosaico, uma peça ter a sua representação proibida,mas poder ser lida livremente[7]. Percebe-se ali uma forma de discordar da proibição d a peça por meio de uma adesão ao ilusionismo histórico proposto pela obra. Segundo o jornalista, o que se veria no texto seria apenas história, no passado, e, mesmo assim, o que ela nos diz é que um homem abusou da confiança nele depositada pelo governo. Mais elogios à “teatralização perfeita de um clima dramático”, mas apenas isso. E a peça demoraria mais vinte anos para voltar à cena.
A partir da década de 60, Miguel Franco envereda pela carreira de ator cinematográfico e faz
diversas participações no cinema, várias delas em adaptações de romances neorrealistas. Estão em sua filmografia os filmes Crime da Aldeia Velha (1964) e O trigo e o joio (1965), ambos de
Manuel Guimarães; Domingo à tarde, de Antonio Macedo (1966); O cerco, de Antonio da Cunha
Telles (1970); Lotação esgotada, de Manuel Antonio (1972); A fuga, de Luis Felipe Rocha (1976);
O rei das berlengas (1978) e Manhã submersa (1980) ambos de Lauro Antonio e Vidas,
novamente com Antonio da Cunha Telles (1984).
Em 1973, Franco trabalha na publicação de A legenda do cidadão Miguel Lino, que recebe
o Prêmio Almeida Garrett, do Ateneu Comercial do Porto. A peça é publicada pela Editora Inova,
em uma coleção intitulada “Teatro para as Quatro Estações”, e recebe boas resenhas em periódicos e revistas, mas não chega a ver o palco. O TEP, Teatro Experimental do Porto, por duas vezes tenta a liberação da encenação, mas em vão. Amélia Rey Colaço tenta também a aprovação da peça para levá-la ao palco do Teatro Capitólio (o Avenida ruíra já em 1967, como o Nacional, sob as chamas de outro incêndio), mas nada alcança.
A legenda do cidadão Miguel Lino, peça que havia sido composta em 1969 e publicada em
1973, precisará esperar o 25 de Abril para subir à cena. Só em 1975, com a encenação de Herlander Peyroteo a peça será apresentada no Teatro Maria Matos[8].
A peça, além de fazer homenagem a personagens da infância de Franco, como o tocador de
ocarina chamado Cecílio[9], trata de um período bastante conturbado da história portuguesa, como já se disse, o das invasões francesas, no século XVIII.
Na página de frontispício, é reproduzida uma das páginas escritas por Erwin Piscator, autor
de Teatro Político[10] e ela delata as intenções da peça e, certamente, de todo o teatro de Miguel
Franco:
A missão do teatro de hoje não pode consistir apenas em relatar
acontecimentos históricos apresentados tal e qual. Deve tirar desses
acontecimentos lições válidas para o presente, adquirir um valor de
advertência mostrando relações políticas e sociais fundamentalmente
verdadeiras e, tentar assim, na medida de suas forças, intervir no curso da
história (PISCATOR apud FRANCO, 1973, p.1).
Piscator, diretor e produtor judeu alemão nascido em 1893, parece exercer papel
fundamental na concepção teatral de Franco e, por conta disso, voltaremos a estudá-lo no capítulo II desse trabalho.
Luiz Francisco Rebello, na Revista Colóquio Letras, fala da grandeza do drama composto
por Miguel Franco, nos seguintes termos: “dos mais ricos e apaixonantes da nossa literatura
dramática contemporânea, não só pela urgência do tema como pelas suas virtualidades cênicas”
[11]. Mais uma vez, como já dissera o próprio Rebello, teatro para ser lido, mas, de acordo com a
censura, impossível de ser encenado.
Além dessas obras históricas, Franco trabalhou também em outras. Algumas delas
terminadas outras que ficaram por finalizar, outras ainda que ficaram nos primeiros rascunhos.
Publicada em 1974, pela Sociedade Portuguesa de Autores, temos Uma visita muito breve,
peça de teatro em um ato, que, com a presença do autor foi encenada na Escola Secundária
Domingos Sequeira, na cidade de Leiria, onde Franco havia estudado, a então Escola Industrial e
Comercial de Leiria.
Já em 1980, sai pela Moraes Editores, O capitão de navios, com o subtítulo de teatro de
divertimento em 3 atos. É de se destacar nessa composição, a presença de um personagem
“Narrador”, remetendo a um componente do teatro épico brechtiano. O capitão de navios mereceu menção de Carlos Porto. Apesar de já findo há anos o salazarismo, a reclamação de Porto no artigo em que procura fazer um balanço do teatro no ano de 1980, assemelha-se muito às antigas queixas: ainda que muitas peças tenham sido escritas, poucas estão sendo encenadas. Além da peça de Franco, a que chama de comédia de costumes, o autor comenta peças de Romeu Correia, Jaime Gralheiro, José Abelaira e José Cardoso Pires[12]. Miguel Franco cultivou também a poesia e as narrativas curtas. Sua obra poética publicada resume-se ao volume de Quinta-Feira e outros Poemas, de 1962, publicado pela Coimbra Editora.
Ao contrário do que poderíamos esperar, seus poemas não são panfletários ou diretamente
políticos, embora haja alguns mais diretos, como o que poema “Estoico” que lembra as falas do
personagem de O Motim. Nesse poema, o eu-lírico ordena: “Não chores nunca, rapaz! / Se a ferida é funda, aguenta / Que o chorar só acrescenta / E aumenta / A fraqueza que isso faz!”[13]. Hátambém poemas do cotidiano, de desilusão amorosa e metapoemas, que comentaremos no próximo subcapítulo, dedicado a um panorama da obra de Miguel Franco.
Mas a vida de O Motim ainda não estava encerrada. Em, pelo menos, três grandes ocasiões
ainda voltar-se-ia a fazer reverência à coragem do texto de Franco.
Após o 25 de Abril, os jornais de Lisboa publicam integralmente um comunicado de Amélia
Rey Colaço, em que ela anuncia a participação da Companhia em um movimento de “renascer do
Teatro Português das cinzas da censura”. Essa participação se materializaria por meio de um
“desagravo” dirigido a todos os atores que, durante os anos de ditadura, passaram pela companhia e
foram prejudicados pelo autoritarismo do governo, à própria Companhia Rey Colaço – Robles
Monteiro, aos homens que oficialmente haviam autorizado a encenação de uma peça, depois
retirada brutalmente de cartaz, e, principalmente, ao autor da uma peça, de “valor incontestável” injustamente perseguido e censurado.
Amélia Rey Colaço cita no comunicado uma dezena de peças para as quais propusera
sistematicamente a montagem, mas sempre lhe fora negada a possibilidade. Entre as proibidas, ela destaca duas de Brecht, duas de Bernardo Santareno, além de outras de Stau Monteiro e Natália Correia. Porém, nesse momento de abertura política, em que assumia a direção do país a Junta de Salvação Nacional, a Companhia escolhe levar ao palco a emblemática voz daqueles que se recusaram a calar diante dos arbítrios do poder totalitário. Pouco mais de um mês após a Revolução dos Cravos, voltava ao palco O Motim, de Miguel Franco.
Em Agosto de 1975, um segundo projeto leva a peça de Franco a um público muito mais
amplo que o do teatro. A divisão de Teatro da RTP do Norte, nas mãos do realizador e membro do Teatro Experimental do Porto, Correia Alves, encena um teleteatro com o texto de O Motim. A escolha do texto de Franco se deu por duas razões, segundo o diretor. Primeiro, por ser assunto do Porto, segundo por ser “muito atual, pois sendo uma coisa que se passou há duzentos anos, é um assunto que ainda não está resolvido (...) é um grito do povo contra as coisas estabelecidas e que estão erradas” [14].
E, por fim, em 15 de julho de 1985, quase vinte anos depois dos vergonhosos
acontecimentos que sucederam a estreia de O Motim, no Teatro Avenida, a peça volta a ser
encenada por ocasião das homenagens prestadas a Miguel Franco, em Leiria.
A Câmara Municipal, considerando justa a homenagem a um homem que prestou grandes
serviços à cultura da cidade, planeja uma série de eventos ligados à vida, à obra e às contribuições de Franco à cultura leiriense e portuguesa.
Entre os dias 7 e 31 de julho de 1985, no teatro José Lúcio da Silva, com entradas francas,
sempre às 18h e 30 min, são projetados os filmes dos quais Franco participara como ator. São
apresentados os filmes Domingo à tarde, O cerco, O rei das Berlengas, Manhã submersa, A
culpa e Vidas. Uma exposição sobre as relações de Franco com a sua cidade é organizada no átrio
do mesmo teatro.
Já na sala de conferências da Região de Turismo de Leiria, são apresentadas várias palestras
que versam sobre Miguel Franco. Os diretores dos filmes acima referidos, Antonio Cunha Telles,
Antonio Campos e Lauro Antonio realizam uma conferência sobre O cinema português
contemporâneo, tendo João Guerreiro como moderador.
Com a participação do crítico, dramaturgo e tradutor teatral, Carlos Porto; do crítico,
escritor, encenador e professor Jorge Listopad e do ator Mario Jacques, membro da Companhia doTeatro Nacional que encenara O Motim, no Avenida, em 1965 uma outra conferência tratava dopapel de Miguel Franco na dramaturgia portuguesa.
Por fim, relevantes nomes do teatro português amador e profissional conferenciaram sobre o
papel de Franco como animador cultural. O próprio dramaturgo participou dessa última conferência.
Mesmo o Jornal de Leiria dedicou uma edição única e especial aos eventos de julho de
1985, em que se destacam comunicados de Luiz Francisco Rebello, Jorge Listopad, José Valentim
Lemos, além de uma entrevista que Franco concedeu a João Guerreiro e os relatos de Carlos
Fragateiro sobre a encenação de O Motim.
Em 1985, como num eterno retorno, um texto de Miguel Franco volta ao mesmo espaço da
Igreja da Pena, no Castelo de Leiria. Esse seria, sem dúvida, o ponto alto das homenagens ao
dramaturgo leiriense. Em montagem do TELA, Teatro Experimental de Leiria, sob a direção
artística de Carlos Fragateiro, que viria a ser diretor do D. Maria II e é atualmente professor da
Universidade de Aveiro, O Motim volta ao palco, dessa vez na cidade natal de seu autor. Interessa ressaltar que a menção de Fragateiro ao texto, no Jornal de Leiria, traz mais uma vez, a questão da história como elemento didático e representativo do presente, pois, diz o diretor que, hoje, “novos Mascarenhas constroem, custe a quem custar, novas teias” semelhantes às construídas no passado.
Assim como o teatro de Franco voltava a Leiria, o enredo da sua mais importante peça
voltava a assumir novos significados, ainda que à revelia de seu autor. Perceber esse “eterno
retorno” é, como que, uma maneira de aprender com o passado, e essa é uma das propostas do
teatro de Miguel Franco.
Nessa última montagem, assiste-se, em derradeira oportunidade, a participação de Miguel
Franco como a personagem José Fernandes da Silva, o Juiz do Povo, alcunhado de “Lisboa”.
Completava-se assim parte da história desse leiriense, nascido em 14 de abril de 1918.
Trajetória repleta de ação cultural, mas também de participação política, por certo, em muitas
oportunidades, elementos indissociáveis.
Irmão mais novo de um membro do núcleo clandestino de implantação da república, Franco
fez parte do Grupo de Apoio ao Partido Comunista, organização estruturada de combate clandestino ao regime salazarista. Foi membro também da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Econômico e Social), esperando que Marcelo Caetano tivesse a força necessária para, formando um governo de centro, acabar com o fascismo. Porém, com o desgosto da guerra colonial, rapidamente se desencantou com a organização. Participou ainda do Movimento Democrático Português, ligado ao Partido Comunista e, depois da revolução, ao Partido Socialista.
Além disso, um humanista, no sentido de um homem voltado ao espírito literário e
democrático que auto intitulava-se “ateu militante de combate”, apesar de privar de excelentes
relações com o clero de Leiria, a quem dizia que “no dia em que começasse a ser crente, era o
‘sinal’ da existência de Deus”.
Franco veio a falecer em 19 de Fevereiro de 1988, em Queluz. Em 2003, ao equipamento
cultural construído na cidade de Leiria é dado o nome de Teatro Miguel Franco.
Nessas anotações biográficas, estão resumidos os motes que impulsionam a vida de Franco,
não só como dramaturgo e ator, mas também como cidadão: a cultura é parte integrante e
indispensável na vida de um país, mas que ela seja, sempre, motivada e pautada pela realidade
social e histórica, que nela encontre o seu ponto de partida, mas que a ela volte e lá interfira e,
assim, contribua com a sua evolução. Sem dúvida um homem de teatro, talvez não na acepção
ordinária do termo, designando um profissional da categoria ou estudioso da dramaturgia. Mas sim um homem que não conseguia se ver sem o teatro, nem conseguiria reconhecer um país sem ele, embora tenha sofrido, como que parafraseando Garrett, a ausência de civilização necessária ao seu desenvolvimento.
Bibliografia
FRANCO, Miguel. Quinta-Feira e outros poemas. Coimbra: Editora Coimbra, 1962.
FRANCO, Miguel. O Motim. 2º edição. Lisboa: Europa-América, 1965.
FREDERICO, Celso. Lukács, um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997.
PORTO, Carlos. O teatro desde a presença. In.: LOPES, Oscar; MARINHO, Maria de Fátima (dir.).
História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Alfa, 2002, v. 7, p. 556 a 573.
PORTO, Carlos. “Balanço do ano literário de 1980 em Portugal / O texto teatral”. In: Revista
Colóquio/Letras. Balanço, n.º 60, Mar. 1981, p. 46-51.
REBELLO. Luis Francisco. Combate por um teatro de combate. Lisboa: Seara Nova, 1977.
REBELLO, Luiz Francisco. “Recensão crítica a Legenda do Cidadão Miguel Lino, de Miguel
Franco” In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 16, Nov. 1973, p. 83-84.
REBELLO, Luiz Francisco. 100 anos de Teatro Português (1880-1980). Porto: Brasília Editora,
1984.
FONTES:
Todas as informações sobre Miguel Franco foram conseguidas por meio de entrevista com Maria João Franco e nos recortes dos jornais abaixo (alguns de difícil identificação), pertencentes ao espólio do autor, guardado por sua filha, além do sítio virtual
http://miguel-lino.blogspot.com/ gerenciado também por Maria João Franco.
Havendo concordância, a entrevista e os recortes deverão compor os anexos da tese.
Jornal de Leiria (Julho de 1985)
Entrevista a Carlos Benigno da Cruz (23 de Maio de 1974)
Diário de Lisboa (16 de Setembro de 1975)
Diário de Notícias (1985)
Região de Leiria (Julho de 1985)
Jornal de Artes e Letras (31 de Março de 1965)
Comércio do Porto (Março de 1965)
Tele-semana de Lisboa (22 de agosto de 1975)
Diário de Lisboa (17 de fevereiro de 1972)
Vida Ribatejana (Maio de 1973)
Região de Leiria (Maio de 1973)
Correio de Nisa (15 de maio de 1965)
Região de Leiria (21 de setembro de 1990)
Diário da Manhã (Fevereiro de 1965)
Diário da Manhã (7 de Fevereiro de 1965)
Jornal de Notícias do Porto (01 de Maio de 1965)
Diário de Lisboa (7 de Fevereiro de 1965)
Diário Popular (3 de Fevereiro de 1972)
Diário do Ribatejo (1 de Maio de 1973)
Diário de Lisboa (1965)
[1] Esse prólogo foi intitulado “Fala de Gil Vicente a El-rey Dom João III e a Rainha Dona Caterina
sua esposa em prólogo da representaçam da sua farsa de folgar Inês Pereira estando a corte em
Leiria no verão de 1526”.
[2] Uma apresentação mais detida das obras de Miguel Franco será feita no próximo subcapítulo.
[3] CABRAL, João. O teatro amador em Leiria. Leiria: Assembléia distrital, 1980.
[4] Por muito tempo, “o Teatro Nacional foi gerido por sociedades de artistas que, por concurso, se habilitavam à sua gestão. A mais duradoura foi a de Amélia Rey Colaço / Robles Monteiro que
permaneceu no teatro de 1929 a 1964. Em 1964, o Teatro Nacional foi ‘palco’ de um brutal incêndio que apenas poupou as paredes exteriores. O edifício que hoje conhecemos, e que respeita o original estilo neoclássico, foi totalmente reconstruído e só em 1978 reabriu as suas portas.”
(http://www.teatro-dmaria.pt/Teatro/Historia.aspx)
[5] Américo de Deus Rodrigues Tomás, da União Nacional, foi o último presidente (chefe de
Estado) do Estado Novo Português, derrubado pela Revolução de 25 de Abril de 1974.
[6] Voltaremos a mencionar esse protesto no subcapítulo seguinte, assim como a atuação da Sociedade Portuguesa de Autores na luta contra a censura em Portugal.
[7] Esse fato é mencionado por Rebello (1977, p. 21): “todos os anos se publicam (...) peças de alto
nível artístico, às quais é todavia sistematicamente recusado o acesso ao palco”.
[8] A construção do Teatro decorreu entre 1963 e 1969, com um projeto da autoria do Arquiteto
Barros da Fonseca e abriu as suas portas a 22 de Outubro de 1969. Em 1982, o teatro foi adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa. (http://www.teatromariamatos.pt/gca/?id=21)
[9] Referência ao Cecílio Flor, que aparece nos contos inéditos e não datados do autor.
[10] Publicado no Brasil pela Civilização Brasileira em 1968.
[11] REBELLO, Luiz Francisco. “Recensão crítica a Legenda do Cidadão Miguel Lino, de Miguel
Franco” In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 16, Nov. 1973, p. 83-84.
[12] PORTO, Carlos. “Balanço do ano literário de 1980 em Portugal / O texto teatral”. In: Revista
Colóquio/Letras. Balanço, n.º 60, Mar. 1981, p. 46-51.
[13] FRANCO, Miguel. Quinta-Feira e outros poemas. Editora Coimbra, Coimbra: 1962, p. 50.
[14] Entrevista de Correia Alves a A.S. do periódico Tele-Semana, de 22 de agosto de 1975.
Do “real” ao “ficcional”: O motim de Miguel Franco
From “real” to the “fictional”: O motim by Miguel Franco
Graça Maria Teixeira
Resumo: Através do drama-histórico O motim, Miguel Franco, dramaturgo português, entretece
o factual e o ficcional, criando uma parábola que, pela sua mensagem, seria alvo da censura do
Estado Novo, só subindo aos palcos livremente após a Revolução de 1974. Neste artigo,
analisamos a presença da História nesta ficção e o significado desta no Portugal dos anos 60.
Palavras-Chave: Teatro português, drama-histórico, censura.
Abstract: In The Riot, an historical drama written by Miguel Franco, this Portuguese writer
combines facts and fiction by creating a parable forbidden by censorship in the 60s and only
acted after the Revolution of 1974.In this article, we analyze the presence of the historical facts
in this play as well as its meaning in the Portuguese society of the 60s.
Keywords: Portuguese Theatre, historical drama, censorship.
Na história da dramaturgia portuguesa podemos constatar que vários
foram os autores que visando passar uma mensagem política, social, religiosa
ou de qualquer outra natureza, o fizeram recorrendo ao chamado “drama
histórico”. Porém este conceito encerra um certo paradoxo, ao remeter para
áreas tão diferentes quanto o ficcional (drama) e o factual (histórico). Como
Ana Vasconcelos refere, esta situação dúbia “resulta da confluência de duas
componentes – História e Literatura – que, à partida, parecem situar-se em
esferas, se não opostas, pelo menos de difícil articulação” (2002: 101). Tal não
nos parece ter sido o caso da obra que iremos focar neste nosso trabalho. O
autor em questão, e sobre o qual nos iremos debruçar, soube, com mestria,
articular o factual e o ficcional, (re)criando um acontecimento histórico, que, no
Portugal de 60, marcaria a diferença pela consciencialização política e social
de que se fez mensageiro.
Comecemos por fixar alguns detalhes biográficos de Miguel Carlos
Franco, mais conhecido por Miguel Franco (1918-1987). Nascido em Leiria,
então uma pequena cidade de província, nela exerceria a sua profissão de
gerente comercial, a par das suas atividades de homem de cultura, contista,
ensaiador, dramaturgo, ator, e diretor artístico. Desde cedo se distinguiu nas
letras e, ainda aluno da Escola Comercial e Industrial de Leiria, já se fazia
notar pelos seus dotes de escrita. Mas foi logo em criança que, nos largos da
sua cidade, assistindo aos espetáculos circenses de companhias ambulantes,
o gosto pelo palco se manifestou. A sua rua era o cenário ideal para a
companhia que aos oito ou nove anos de idade já criara, recorrendo aos
amigos para com eles “apresentar” números de teatro, fantoches e circo. Em
adolescente, e tendo-lhe sido reconhecidas características que fariam dele um
“homem de teatro”, foi levado a ingressar num grupo amador existente num
bairro periférico da cidade, onde desde logo se revelou como ator, chegando a
diretor artístico.
A atividade na área do teatro viria pois a consolidar-se em Leiria,
através da entrada para o Grupo Dramático Miguel Joaquim Leitão e, mais
tarde, para o Grupo de Teatro Miguel Leitão (ambos de teatro amador), no qual
colabora durante trinta anos, arrecadando vários prémios.
Numa cidade de cariz provinciano, muito fechada, onde ainda se
respirava muito do ambiente descrito por Eça n‘O Crime do Padre Amaro,
Miguel Franco toma a seu cargo a dinamização de várias iniciativas culturais,
devendo-lhe Leiria muito dos seus períodos áureos de atividade teatral.
Destacamos, como exemplo, em 1972 os Festivais de Arte de Leiria. No seu
âmbito, conseguiu levar à cena a peça de Ésquilo, Os Persas, tendo por
cenário o magnífico castelo medieval da urbe, um dos mais belos da Europa
(nesse local, levaria, mais tarde, com grande sucesso, uma peça vicentina).
Em 1973, já no espaço do novíssimo Teatro José Lúcio da Silva, edifício
oferecido ao município por este benemérito comendador leiriense, emigrado no
Brasil. Miguel Franco apresentou então, a partir de uma peça de Strindberg,
remodelada e atualizada, o texto A Dança da Morte em Doze Assaltos. Em
1974, dirigiu a companhia Os Bonecreiros – Teatro Laboratório de Lisboa na
peça A Mosqueta, do italiano Ruzanté. Em Maio desse mesmo ano, seria a vez
de apresentar História do Jardim Zoológico de Edward Albee, e já após Abril de
74, faria subir ao palco a peça de B. Brecht, O Terror e a Miséria do III Reich,
resultado da sua colaboração na companhia do Teatro da Cornucópia, uma
companhia de teatro experimental de Lisboa. Para além do teatro, muitas
foram as atividades culturais promovidas por Miguel Franco a bem da sua
cidade. Lembramo-nos, por exemplo, de um notável ciclo de “Conversas”, para
o qual convidou nomes bem conhecidos: Vitorino Nemésio, David Mourão
Ferreira, José Augusto-França, entre outros.
O apelo da sétima arte também se fez sentir e, em 1963, estreia-se
em duas curtas-metragens onde ensaia os seus dotes de ator cinamatográfico.
Após essa “experiência”, iniciou uma série de presenças em filmes nacionais e
estrangeiros, dos quais citamos apenas alguns: 1963, O Crime da Aldeia Velha
de Manuel de Guimarães; em 1964, Triângulo Circular de Pierre Kast; em
1965, Domingo à Tarde de António Macedo (filme levado ao Festival de
Berlim); em 1966, Uma Abelha na Chuva de Fernando Lopes; em 1970, O
Cerco de António da Cunha Telles (filme presente a concurso nos festivais de
Cannes e de San Sebastian, com Miguel Franco no principal papel masculino);
em 1978/9, Manhã Submersa de Lauro António (da obra homónima de Vergílio
Ferreira); em 1983, Vidas de A. Cunha Telles.
Vivendo em Leiria procurava frequentemente Lisboa, onde se
encontrava com pessoas de renome ligadas às letras – Bernardo Santareno,
Luís Francisco Rebello, Romeu Correia, Urbano Tavares Rodrigues, e muitos
outros. Acompanhava-os em palestras e mesas-redondas, falando,
naturalmente, de teatro. Em março de 1970 está presente na reunião para a
elaboração do projeto dos estatutos de uma futura associação portuguesa de
escritores, junto com o escritor e jornalista Sousa Tavares, o romancista Carlos
Oliveira, o intelectual António Quadros, sob a presidência de Luís Francisco
Rebello, acompanhado do futuro Nobel José Saramago, e do académico Óscar
Lopes. Mais tarde, em janeiro de 1974, entra para a Comissão Cultural
Literária, já como elemento ativo da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.
Da obra de Miguel Franco temos notícia de uma comédia regional
inédita, datada de 1948, intitulada Rosa Benedita. Já em 1957, escreve um
texto “em redondilha de sabor vicentino” que o autor denominaria de Prólogo, e
que antecedia as representações da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente,
incluída no repertório do Grupo de Teatro Miguel Leitão. Aliás, o fundador do
teatro português inspiraria Miguel Franco e levá-lo-ia, nas suas próprias
palavras, a procurar “essa resina que escorre, seivosa e corada, dos
saborosos autos de Gil Vicente”. Em 1962 faz uma incursão pela poesia, tendo
chegado até nós o livro Quinta feira e outros poemas, em edição do autor, cuja
temática remetia em grande parte para o mar, a mulher e a cidade. Seria, no
entanto, em 1963, com a publicação da obra a que adiante nos referiremos
com mais detalhe, O motim, que alcançaria uma projeção nacional,
consolidada, dois anos mais tarde, com a peça Legenda do Cidadão Miguel
Lino, objeto do prémio Almeida Garrett, atribuído pelo Ateneu Comercial do
Porto. Nela volta a uma temática de cariz histórico, pouco trabalhada na nossa
dramaturgia nacional: as invasões francesas.
Publicou, em 1974, Visita muito breve, peça em um ato, difundida pela
então Emissora Nacional que versava a problemática da emigração. Inédita
permanece ainda a sua peça Capitão Durand e, de uma encomenda da
Secretaria de Estado da Cultura viria a resultar, nos inícios de 1979, e ainda
para a Rádio, a peça O Capitão de Navios, considerando-a Miguel Franco
apenas “uma peça para divertimento”. Como contista, deixou-nos o livro
Passeio do Reno, onde inclui o conto “Cecílio Flor”, baseado num pobre cego,
seu conhecido, tocador de ocarina nas ruas da cidade, e que, mais tarde, em A
Legenda, aproveitaria para dar corpo à personagem “Cecílio”.
Portugal, anos 60 - o papel da censura
A abordagem ao texto dramático O motim, e o que viria a acontecer
imediatamente após as primeiras representações desta peça, não ficariam
claros sem uma referência ao Portugal dos anos 60. Década de profundas
mudanças, verificar-se-ia logo no início da mesma uma lenta viragem à
Europa, e novos “ventos” viriam influenciar os quadrantes da sociedade e da
cultura. Procurado por milhares de turistas, há, claramente, no país, uma
aculturação que se intensifica com o fenómeno da emigração. Com a saída em
massa de mão de obra masculina, o mercado de trabalho abre-se às mulheres,
dando-se uma feminização da força laboral, o que em muito contribuiu para
uma mudança de mentalidades na visão do papel das mulheres na sociedade,
começando estas a ganhar voz. Marcante foi também a movimentação de
milhares e milhares de jovens que, por via da vida militar ou escolar,
entreteceram e fomentaram uma forte rede de hábitos e costumes, abrindo-se,
por sua vez, a novas ideias e ideais.
Ainda em 60, e na educação, registou-se um acréscimo significativo da
população escolar desde o básico ao superior, embora não fosse o suficiente
para se alcançar a situação sócio-cultural (e económica) de quase todos os
países da Europa Ocidental. No entanto, a classe média aspirava já a outros
níveis de oferta, quer no que respeita à área social, quer à cultural, verificandose,
nesta década, um aumento acentuado no número de museus e bibliotecas,
com uma duplicação no número de leitores. O mesmo aconteceu com a
imprensa escrita: o número de jornais e publicações disparou, num país em
que os hábitos de leitura se fixavam abaixo do desejável. Quanto ao
audiovisual, a década de 60 viu aparecer a televisão, que rapidamente se
impôs no dia a dia dos portugueses, alterando os seus hábitos sociais e
familiares. Agora, dentro dos lares, outras realidades surgiam, despertando
outros interesses e necessidades.
Não poderíamos falar desta década sem mencionar a situação políticomilitar
que o país vivia, desde 1961, com o eclodir da chamada “guerra
colonial”. Iniciada em Angola e rapidamente alargada a todas as outras
“províncias ultramarinas”, esta realidade condiciona toda a vida dos
portugueses e será ainda motivo de um fortalecimento da censura em todas as
áreas.
Esta presença censória, após um alívio sentido no período do pósguerra,
com a derrota do nazismo-fascismo e a subsequente crítica aos
poderes ditatoriais, volta a acentuar-se na vida cultural, e, muito
principalmente, sobre a produção dramática, fazendo-se sentir na recorrente
proibição de peças. Em 1962, por exemplo, o dramaturgo Luís de Sttau
Monteiro viu proibida a sua peça Felizmente Há Luar!, e a própria tipografia,
onde a segunda edição se compunha, foi completamente queimada e
vandalizada, tendo-se mesmo concretizado a detenção dos tipógrafos. Nem a
“primavera marcelista”, com o seu Exame Prévio, traria a liberalização tão
ansiada sobre o que se escrevia ou o que se dizia.
Apesar de tudo, bem a meio da década, em março de 1965, o ano
parecia apresentar bons auspícios: o reaparecimento da Companhia Nacional
a trabalhar no Teatro da Trindade, duas novas companhias teatrais, a abertura
de mais uma casa de teatro (o Teatro Villaret, em homenagem a esse grande
homem da palavra, João Villaret) e novos espetáculos. Até a companhia de
Amélia Rey-Colaço, por força do terrível incêndio de 2 de dezembro do ano
anterior (1964), o qual arrasou o espaço que ocupava, o Teatro Nacional D.
Maria II, voltava a trabalhar, instalada agora no recém-recuperado Teatro
Avenida. E, bem conscientes da força interventiva do teatro, surgem várias
companhias dramáticas formadas por gente jovem com vontade de fazer teatro
de autor e teatro de encenador, isto é, um teatro alternativo ao meramente
comercial e para um público mais exigente, embora muito centrado na capital.
No resto do país, salvo algumas digressões de companhias sedeadas em
Lisboa, apenas graça a grupos de teatro amador, entre os quais o já referido
Grupo de Teatro Miguel Leitão, se ia mantendo viva a presença do teatro em
cidades e vilas.
Desde sempre o teatro se mostrou como um meio de revelar angústias,
medos, ansiedades, alegrias e revoltas. Em vários países e em várias épocas,
a censura sempre atuou sobre a capacidade que este tem de fazer agir, ou de
se fazer eco da sociedade, possibilitando um pensar coletivo. Consciente disto,
em Portugal, e através da censura, o regime mantinha proibidos de serem
representados nomes como o de Bertold Brecht, Peter Weiss, Jean Paul
Sartre, Arthur Miller; mas também obras de Moliére, B. Shaw, Shakespeare, e
até mesmo de Gil Vicente foram impedidas de subirem ao palco.
Seria, pois, difícil escapar O motim à força desta ação censória.
Escolhida para abrir a época de 65, da reputada companhia Amélia Rey
Colaço – Robles Monteiro, após a catástrofe a que já aludimos, ver-se-ia a
mesma, ao fim de cinco dias de representação, banida do repertório e o nome
de Miguel Franco proibido de aparecer em toda e qualquer publicação nacional
(na verdade, já não viria nesse ano a ser mencionado num artigo intitulado
“Balanço do Ano Teatral”). Procuradas as causas para tal arbitrariedade,
percebeu-se que o censor teria considerado que a mesma continha uma forte
instigação à revolta popular; sabemos, porém, que também as ligações e
ideologias políticas seguidas pelos autores eram razão suficiente para que os
mesmos fossem impedidos de verem concretizadas em palco as suas obras.
Contra esta absurda decisão, reagiram com veemência os intelectuais
da época, enviando ao então chefe do governo, Prof. Marcelo Caetano, o
manifesto “Protesto contra a proibição da peça O motim”, lembrando, entre
outros considerandos, os malefícios que outrora a censura inquisitorial trouxera
à arte dramática. Porém, sem quaisquer resultados (Miguel Franco veria,
também, a sua peça Legenda do Cidadão Miguel Lino ser alvo da mesma
censura; esta só seria representada após Abril de 74).
Voltando a O motim, os claros paralelismos que a peça apresentava
foram, sem dúvida, a razão principal de tão radical banimento. Miguel Franco
tinha “ousado” colocar o público perante duas leituras possíveis da sua obra: a
da própria História e a da revolta de um povo contra o poder totalitário.
Porto, 1757 - o motim
Terá sido a partir de uma efeméride lida num jornal, que Miguel Franco
trabalhou a ideia que viria a resultar nesta sua obra O motim. Numa conversa
com o seu amigo, o dramaturgo Bernardo Santareno, pediu-lhe que fosse ele a
pegar no tema; porém, consciente das potencialidades de Miguel Franco,
Santareno logo o entusiasmou a concretizar, ele mesmo, a sua escrita.
Mergulhou então numa procura de documentos coevos e testemunhos
literários (por exemplo, Um motim há cem anos, do escritor Arnaldo Gama),
que o levassem a perceber os acontecimentos de 1757, passados no Porto,
cidade já então conhecida pelo seu indomável espírito liberal.
É fundamental referir que a tradição económica desta região assentava
há muito na produção vinícola e no comércio e profissões que se desenvolviam
à sua volta: armazenistas, tanoeiros, vinhateiros, taberneiros, mercadores,
exportadores, barqueiros, e até corporações religiosas. Em meados do século
XVIII já estas actividades tinham alcançado um forte desenvolvimento com as
exportações do vinho do Porto, muito principalmente para Inglaterra. No
entanto, a pressa na obtenção de lucros fáceis resultou numa crescente
adulteração da qualidade deste produto, o que levou a que os principais
clientes, os ingleses, o tivessem considerado prejudicial para a saúde; em
consequência, rapidamente os preços baixaram, as exportações diminuíram,
resultando num descalabro económico para toda a região, o que viria a agravar
as vicissitudes já sentidas em anos vinícolas anteriores. A vulnerabilidade
reconhecida a uma área que devia ser protegida e o quase monopólio
mercantil exercido pelas feitorias inglesas levaram a que fosse solicitada a
intervenção do próprio rei, D. José I, e do seu Secretário de Estado, Sebastião
José de Carvalho e Melo, mais tarde Marquês de Pombal. A Lisboa chegou
então Frei João de Mansilha, o qual expôs a necessidade de se criar uma
Companhia Geral que fizesse face à crise que se vinha abatendo na produção
e comércio do vinho da região. Foi de imediato aceite esta pretensão, e em 31
de Agosto de 1756 instituía-se a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas
do Alto Douro, à qual foram conferidos desde logo poderes majestáticos.
Não passaria muito tempo até que se fizessem sentir as primeiras
manifestações de todos os que se sentiam lesados pela atuação da
Companhia, quando esta quebrou com hábitos antigos de relação com o vinho
e os privilégios detidos até então - na senda dos princípios mercantilistas de
proteção e monopólio que caracterizaram a gestão de Pombal. Os interesses
instalados foram fortemente lesados: na cidade, a Companhia fechou nove em
cada dez tabernas, (havia cerca de 600 a 1.000 tabernas por essa altura)
apropriando-se do monopólio da comercialização e exportação de todos os
vinhos; só ela podia vender vinho a retalho na cidade e arredores, só ela podia
exportar para o Brasil as aguardentes, os vinhos e o vinagre.
O mau estar instalado era propício a revoltas contra a situação
imposta, pois as medidas tomadas tinham, em pouco tempo, arruinado os
pequenos proprietários e os seus empregados. Querendo afirmar o seu
protesto contra este estado de coisas, e aproveitando o clima de euforia que se
tinha vivido nos anteriores dias de Entrudo, o povo da cidade juntou-se em
bandos, nessa quarta-feira de Cinzas, 23 de Fevereiro do ano de 1757.
Mulheres, rapazio e, segundo o historiador Lúcio de Azevedo (1990:131),
“vadios, soldados, colarejas, meretrizes, escravos, a ralé da cidade”
deslocaram-se até à casa do Juiz do Povo, o alfaiate e taberneiro José
Fernandes da Silva, a fim de afirmarem o seu protesto. Para a História ficaram
os seus nomes, que dão bem a imagem das suas profissões e do seu estatuto
social: “Negres”, “Maria Pinta”, “Carinha de Meio-Tostão”, “Estrelada”, “Cheta”,
“Brejeira” e tantos outros.
Embora contrariado, o Juiz seguiu “em cadeirinha” para casa do
Chanceler Bernardo Duarte de Figueiredo, a fim de lhe ser apresentado um
requerimento, anteriormente elaborado, e que pedia a extinção oficial da
Companhia. Amedrontado com a multidão e a fim de acalmar os ânimos, este
anuiu, decretando o retorno à situação que vigorava antes da fundação da
mesma. Seguiu então o povo para casa do Provedor da Companhia, Beleza de
Andrade, a qual, no excesso da euforia, foi assaltada, tendo sido alvo de
avultados prejuízos. Deu-lhes porém resposta um criado, atirando uns tiros de
bacamarte, o que exaltou a multidão que vandalizaria os próprios escritórios da
Companhia, enquanto era chamado o Corpo da Guarda, para dominar a situação.
Assim aconteceu e pelas quinze horas já tudo se mostrava calmo,
saindo à rua as tradicionais procissões de Quarta-Feira de Cinzas. Tudo
parecia ter voltado ao normal, mas para Lisboa seguiria o relato de tudo o que
se passara, em carta assinada pelo Senado da Câmara do Porto. Dias depois,
e perante o espanto geral da população, Carvalho e Melo fez deslocar para a
cidade um Juiz da Alçada com “ilimitada jurisdição” (cf. Sentença: 2), a fim de
proceder à devassa sobre os tumultos, ou arruaça, como muitos lhe
chamaram. O escolhido foi o Desembargador João Pacheco Pereira de
Vasconcelos, homem dos mais ricos da região do Douro e que detinha no
Porto vários cargos de nomeada; para escrivão, viria seu filho, José de
Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo, membro reconhecido de várias
academias e associações literárias e científicas, embora tivesse passado à
História como um homem cruel, de poucos ou mesmo nenhuns escrúpulos, e
de grande ambição. O que não passara de uma “arruada” fora visto como um
verdadeiro motim e D. José I emitiria mesmo uma carta, referindo que
quaisquer impedimentos à execução das ordens régias seriam considerados
delito de lesa-majestade.
A chamada “revolta do vinho” ou “revolta dos borrachos” (cf. Azevedo,
1990:131), onde segundo alguns elementos afetos a Pombal estaria mão de
jesuítas ou de grandes negociantes ingleses e portugueses, resultou num
processo que sentenciou 424 homens e 54 mulheres do povo, por crime de
alta traição e de lesa-majestade da primeira cabeça. Foi um ato absolutamente
desproporcionado, que atingiu “gentalha esfrangalhada e piranga” (Camilo
Castelo Branco, 1982:136), a qual foi submetida à tortura, despojada dos seus
bens, separada de filhos e cônjuges, tendo muitos sido açoitados, enviados
para o degredo ou mesmo mortos na forca. A sentença da Alçada foi publicada
no dia 12 de Outubro desse mesmo ano e dois dias depois tinham sido
enforcados treze homens (latoeiros, tanoeiros, criados…) e quatro mulheres
(uma que se encontrava grávida, seria executada logo após o nascimento da
criança).
A cidade, também ela condenada, suportou pesadas penas que se
traduziram em largos meses de sofrimento, uma vez que, para que ficasse de
exemplo a todos os que ousassem opor-se à vontade de Sebastião José de
Carvalho e Melo, foi ordenado que se expusessem as cabeças decepadas e os
corpos esquartejados dos enforcados por toda a cidade, mas, muito
principalmente, nas ruas onde se julgava ter tido início o “motim”. Algum tempo
depois, e por questões de saúde pública, transferiram-se os mastros para as
entradas da cidade onde ficariam durante todo o inverno. Também durante
cinco longos meses a população mais desfavorecida teve de dar aboletamento
a cerca de 2.300 homens dos batalhões deslocados para a cidade, com todos
os prejuízos que daí advinham.
O motim
Foi, como já referimos, da leitura desta efeméride que Miguel Franco
partiu para a escrita de O motim. O autor encontrou, claramente, paralelismos
entre a prepotência exercida sobre o povo na centúria de setecentos e a que
subjugava Portugal, na década de 60, em pleno século XX. Procurando uma
certa distanciação temporal, a fim de a peça ultrapassar as apertadas malhas
da censura, Miguel Franco aspirava porém que o público reconhecesse uma
forte analogia presente no enredo: o exercício de um despotismo pela força
das armas e a subjugação de um povo por imposição de um enclausuramento
económico, cultural e ideológico.
Foi este paralelismo entre o poder absolutista de Carvalho e Melo e a
ditadura do Estado Novo que levou a que a peça fosse retirada e proibida.
Mário Castrim, cronista e crítico de teatro, escreveria em 1975 que O motim
teria sido “uma carta com endereço bem legível e que não enganava ninguém”.
Na verdade, partindo dos referentes históricos que suportam as figuras
dramáticas e demais elementos que as contextualizam, Miguel Franco
(re)constrói nesta sua obra dramática os acontecimentos vividos em 1757,
orientando o público para a leitura da sua “parábola”.
Na estrutura externa deste texto dramático deparamos, logo no seu
início, com a transcrição da notícia da efeméride já por nós referida, e lida por
Miguel Franco no jornal Primeiro de Janeiro, bem como uma passagem da
obra Recordações, do viajante e cronista Jacome Ratton, na qual este se
reporta aos acontecimentos de 1757, segundo o que “pessoas de crédito” lhe
teriam narrado no final desse ano, aquando da sua passagem pelo Porto. Uma
marca espácio-temporal, no final da nomeação das personagens, refere:
“CIDADE DO PORTO, Ano de 1757”, anulando qualquer dúvida sobre o
espaço e o tempo que irão iniciar o processo comunicativo.
A peça organiza-se em três atos. Em palco, “uma adega atabernada”,
a taberna do Justino (remetendo para homem justo) que irá servir também de
cenário ao Tribunal da Alçada, remetendo para a importância do comércio do
vinho em todo este processo. A inclusão de figuras significadoras, apoiando as
figuras representadoras (estas de cariz histórico e factual), é fundamental para
o reconhecimento dos factos, do clima que se vivia e da mensagem a passar.
O primeiro personagem a entrar em cena é o Profeta, que, tal como o nome
indica, deixará antever, ao longo das suas falas, a tragédia que se prefigura.
PROFETA – Então eu vou cantar…às desgraças do Porto!...
VOZES – Acabaram-se as desgraças! […]
PROFETA (olhos tristes) – Acabaram-se?!
[…]
PROFETA (mais profundo) - …Acabaram-se!
[…]
TOMÁS PINTO (dando com o Profeta) – Então vossemecê fica por
aí?
PROFETA (levantando lentamente os olhos) – Eu fui o primeiro a
cair!
Os paralelismos presentes na obra comprovavam-se na escolha das
personagens, nas marcas de tempo, de espaço e na própria ação. Atentemos
em alguns:
Personagens d’ O motim Registos na Cópia da Sentença
Estrelada Custódia Maria a Estrelada
Negres António de Sousa de alcunha o Negres
Cheta – “moinante, embrcado” José Ribeiro Oleiro, e Mariheiro, de
alcunha o Cheta.
Maria Pinta, mulher do Negres Maria Pinta, […] casada com […] António
de Sousa o Negres.
Advogado Nicolau Araújo Bacharel Nicolau da Costa Araújo
Luís Beleza de Andrade, Vereador da
Câmara do Porto e Provedor da Companhia
Provedor […] Luís Beleza de Andrade
José Fernandes da Silva, Juiz do Povo, o
“Lisboa
José Fernandes da Silva de alcunha o
Lisboa
Curioso, e como se de uma homenagem se tratasse, é o facto de
Miguel Franco ter tido a preocupação de lembrar muitos outros nomes dos que
foram sentenciados e que, não participando enquanto personagens, são por
estas nomeados. Mas continuemos com mais alguns paralelismos,
consubstanciados a partir das didascálias explícitas e implícitas (sublinhados
nossos):
Paralelismo de tempo:
Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei: “…dia em que concorre toda a
vizinhança desta cidade a ver a procissão dos Terceiros de S. Francisco…”.
N’ O motim (1.º Ato, p. 34, 35):
JUSTINO – […] Depois da procissão, …
(Ouve-se um sino, concitando os fiéis para a procissão de S. Francisco).
Paralelismo de espaço:
Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei de 25 de Fevereiro de 1757: “… à
porta do mesmo Chanceler que serve de Governador fizeram diliga para lha entrarem
nas casas,…”.
N’ O motim (1.º Ato, p. 20):
JUSTINO (indo à porta) – Estes estavam a dizer que está tudo à porta do
Governador…
Paralelismo de factos ou acontecimentos:
Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei: “…ele [o Juiz do Povo] se lhes
escusou, com o pretexto de doente, e lhe mandaram buscar uma cadeirinha e
metendo-o nela continuaram com maiores alaridos…”
N’ O motim (1.º Ato, p. 21):
(O povoléu abre alas para deixar passar o grupo que traz numa cadeirinha o Juiz do
Povo, …”)
Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei: “…chegados à sua porta […]
romperam no excesso […], fazendo forma para lhes entrarem na mesma casa, e
disparando-se de dentro dois, ou três tiros […]”.
N’ O motim (1.º Ato, p. 31, 32):
CAETANO […] – Já há tiros! Já há tiros!
CAETANO (continuando) - …Estava o povo em frente da Companhia, a clamar e aos
vivas…; de repente abre-se uma janela do Provedor, […] e dois vultos de bacamarte
apontado, dispararam contra a gente!
Na procura de um plasmar da situação que o marcou tão
profundamente, Miguel Franco vai ao ponto de incluir no seu texto a
transcrição de passagens da própria Sentença, tendo escolhido a descrição
das punições aos considerados “cabecilhas”.
A presença de tão grande número de paralelismos factuais leva-nos a
pensar na possibilidade de ter sido Miguel Franco influenciado pelo chamado
“teatro-documento”, uma vez que se apoiou no uso documental da História,
tendo, como atrás dissemos, transcrito para a fala do “Oficial de Justiça”, no 3.º
ato, parte do texto da Sentença sem qualquer modificação.
Estamos pois em presença de um “drama histórico”, uma construção
ficcional apoiada em situações que a memória coletiva registou, e que
compromete, restringe ou limita o que à partida seria essencialmente da esfera
da imaginação. Concordamos com Eugénia Vasques, quando esta refere ser
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Número 01 Jul-Dez 2011
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teatro histórico o que procura relacionar ”de modo inovadoramente dialéctico,
uma verdade histórica com uma verdade dramática, havendo, neste caso, a
necessidade de uma investigação rigorosamente documentada” (1998:82).
Por outro lado, em Combate por um Teatro de Combate, Luís
Francisco Rebello data de 1963, 1964 e 1965 (ano da representação de O
motim) as primeiras peças alemãs a que se convencionou designar por “teatrodocumento”,
isto é, peças documentais (cf. 1977:112). Weiss, ainda citado por
Rebello, propôs para o teatro-documento, a “capacidade de construir, a partir
de fragmentos da realidade, um exemplo utilizável” (1977:114). Pensamos que
Miguel Franco superou o conceito, indo mais além da própria realidade; utilizou
um documento histórico não como um mero dado documental, mas como
matéria teatral, transformando-o em algo de artisticamente poético.
Bibliografia
AZEVEDO, Cândido. Mutiladas e Proibidas: para a História da Censura
Literária em Portugal no Tempo do Estado Novo. Lisboa:
Caminho,1997.
Carta da Câmara do Porto ao Rei, de 25 de Fevereiro 1757.
CASTRIM, Mário. O Fascismo não gostou deste motim. Diário de Lisboa.
Lisboa, 16 Setembro 1975, p.15.
FRANCO, Miguel. O motim. Coimbra: edição do autor, 1963.
FRANCO, Miguel. Legenda do cidadão Miguel Lino. Porto: Editorial Nova,
1973.
GAMA, Arnaldo. Um motim há cem anos. Porto: Livraria Tavares Martins,
1935.
REBELLO, Luís Francisco. Combate por um teatro de combate. Lisboa:
Seara Nova, 1977.
Sentença da Alçada, que El Rey Nosso Senhor mandou conhecer da
Rebellião sucedida na Cidade do Porto em 1757. Lisboa: Oficina de António
Rodrigues Galhardo, Impressor da Real Mesa Censória, 1786.
VASCONCELOS, Ana Isabel. O drama histórico: entre Clio e Tália. Actas
Colóquio Literatura e História – para uma prática interdisciplinar. Lisboa:
Graça Maria Ferreira Teixeira- Mestre em Estudos Portugueses Interdisciplinares pela Universidade Aberta - Lisboa
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