LINHA DA VIDA
A partir de 27 de Janeiro na Galeria de Arte do Convento Espírito Santo, em Loulé
curador João Moniz
texto do catálogo
POR DENTRO DE NÓS, SUOR E LAMA
Escolhi, numa espécie de acaso, três pinturas de Maia João Franco, de entre um conjunto que vai ser exposto em Loulé. Vejo, com tenho visto antes, noutras horas de dor e desejo. Concentro o olhar naquele corpo ao alto, braços abertos a perder-se no escuro, um tronco poderoso que se abre à hibridez, escondendo o género na soturna zona do pubis. A pele emerge do escuro, está certamente morna, molhada de si mesma, do suor, da água ter salpicado o salto, um mergulho de pés sobre a lama apenas pressentida quando este ser (de nós) se repete olhando para cima, certamente sem ver nada na crise deste nosso interior como túnel do subsolo de qualquer grande cidade. O ventre distende-se, apetece espalmar ali a nossa mão, deslizando na liquidez híbrida da carne e da força.
Sabemos que tudo não passa de uma certa vontade alucinada, um corpo que nos visita porque nunca fomos capazes de o perder. Como naquele close-up do nosso olhar, partida d apelo e do ver, ainda e de novo num tempo sem luz solar, a massa de outro nu sem nome, enquadrado por cortes, mais visível à esquerda do que à direita, em agonia, fios de sangue escorrendo sobre a pele macerada ou de alguém que já não respira desde há muito, no mundo pesado e absurdo da globalização. Estas formas, afinal ainda passando por nós num milhar de anos depois
de um milhão.
A escolha leva-nos, no enjoo dos cheiros da morte e dos destroços, ao que, bem perto dos olhos ardentes, nos aparece como um rosto plasticamente estilhaçado, em contraste de escuro, ainda que não passe dos glúteos de certa luz bruxa atrás, água escorrendo pelos cabelos, suor ainda, chuva a lembrar o Blade Runer, nenhuma partida entretanto possível, há apenas quatro anos para viver e para morrer, fechando devagar os olhos entre o néon, o negrume em volta dos mercados, um olho à venda como o último sopro inimaginável de Deus. Tudo se parece com tudo mas Deus já não vê.
Rocha de Sousa / 2016