Do Castelo de Leiria ao Teatro Avenida: a trajetória de Miguel Franco
From Leiria Castle to the Avenida theater: the trajectory of Miguel Franco
Flavio Felicio Botton1
Resumo: Este trabalho pretende expor a carreira do dramaturgo que é considerado um dos
grandes nomes do teatro histórico português do século XX, Miguel Franco, desde a sua estreia
no teatro amador de Leiria até o momento em que recebe as homenagens de sua cidade natal,
passando pela encenação de sua obra-prima, O Motim, em Lisboa. O delineamento dessa
trajetória tem por objetivo perceber as motivações da obra dramática e histórica do autor.
Palavras-Chave: Miguel Franco; teatro português; teatro histórico
Abstract: This paper aims to expose the career of the playwright who is considered one of the
greatest names of the Portuguese historical drama of the twentieth century, Miguel Franco,
since his debut in amateur theater of Leiria until the moment it receives the homage of his
hometown, through staging of his masterpiece, O Motim, in Lisbon. The design of this course
aims at understanding the motivations of historical and dramatic work of the author.
Keywords: Miguel Franco ; Portuguese theater, historical drama
“Mas eu não quis só fazer um drama, sim um
drama de outro drama, e ressuscitar Gil Vicente a
ver se ressuscitava o teatro” Almeida Garrett
(Prefácio à primeira edição de Um auto de Gil
Vicente).
O Castelo de Leiria foi construído por D. Afonso Henriques como ponto
estratégico na luta contra os mouros. Tomado pelos exércitos árabes por duas
vezes, em ambas foi reconquistado de volta às linhas cristãs.
Convocadas por D. Afonso III, em 1254, foram lá reunidas as cortes
que, pela primeira vez, congregaram nobreza, clero e povo, possibilitando a
participação da classe até então calada nas decisões reais. O advento das
cortes de Leiria seria conhecido posteriormente como o momento de criação do
parlamento nacional português.
1 Professor de Literatura Portuguesa e de História da Arte da Universidade do Grande ABC.
Doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, desenvolve tese sobre
a obra de Miguel Franco.
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Durante o reinado de D. Dinis, o rei trovador, serviu de palácio real por
diversas ocasiões e, em meados de 1300, acabou sendo doado, junto com
toda a povoação, à rainha santa Isabel, que passou a morar no castelo e lá
criou o herdeiro do trono, o jovem Afonso, futuro Afonso IV de Portugal, o
Bravo, tido como o primeiro grande financiador das explorações atlânticas.
Foi nesse espaço histórico e emblemático que, em junho de 1957, um
ator, representando o papel de Gil Vicente, dirige-se à “corte” antes da
encenação de sua peça A Farsa de Inês Pereira. Muito respeitosamente e à
maneira vicentina, estando já pronto para assumir o papel de Pero Marques,
ele explica ao público o enredo da farsa que se apresentará. Esse ator era
Miguel Carlos Franco (14-04-1918 19-02-1988), também autor do Prólogo
que a personagem recitara. Dava-se ali a estreia de um texto da lavra do autor.
A mesma peça, também precedida pelo Prólogo2, foi montada nos anos
seguintes, igualmente em espaços históricos. Em 1959, esteve nos claustros
do mosteiro de Alcobaça e, em 1961, no Convento de Tomar.
Esse tipo de montagem, de uma peça teatral em espaço histórico,
apesar de ser evento muito frequente em terras portuguesas, parece ser
representativo da trajetória da obra de Miguel Franco, pois a história de
Portugal, em seus eventos e com suas personagens, são a maior fonte em que
se alimenta a dramaturgia do autor. No Prólogo, ele encarna o pai do teatro
português. Em sua grande obra, O Motim, temos a revolta do povo do Porto
contra a criação da Companhia de Vinhos do Alto Douro. As personagens de A
Legenda do cidadão Miguel Lino anseiam pela chegada das tropas francesas
como libertadoras, durante a primeira invasão do século XVIII. Percebe-se
então, claramente, a história do país como a sua grande motivação dramática,
embora haja alguns trabalhos seus fora desse domínio.
Além do exposto, há outro elemento caracterizador desse dramaturgo e
ator, que seria a sua intensa participação cultural e política. Grande motivador
cultural da cidade de Leiria, Miguel Franco foi o fundador, em 1950, do Grupo
de Teatro Miguel Leitão cujas atividades acabam por transcender a sua cidade
2 Esse prólogo foi intitulado “Fala de Gil Vicente a El-rey Dom João III e a Rainha Dona
Caterina sua esposa em prólogo da representaçam da sua farsa de folgar Inês Pereira estando
a corte em Leiria no verão de 1526”.
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natal com duas participações bem-sucedidas nos concursos promovidos pelo
Secretariado Nacional de Informação. A primeira, em 21 de setembro de 1959,
leva ao palco a peça Tá-Mar, de Alfredo Cortez, que conta a história de
pescadores da Nazaré. Nessa ocasião, o Grupo consegue, além do prêmio de
Melhor Drama ou Tragédia, o de melhor ensaiador para Miguel Franco. Dois
anos depois, agora no Teatro da Trindade, em Lisboa, em 24 de setembro de
1961, com a montagem da Farsa de Inês Pereira, antecedida mais uma vez
pelo Prólogo do autor, o grupo alcança o prêmio de melhor comédia ou farsa,
além do segundo lugar para Miguel Franco novamente como melhor ensaiador.
De volta a Leiria, os atores do grupo foram tratados como grandes
estrelas. A conquista foi fortemente sentida pela sociedade leiriense, fato que
pode ser tomado como um grande motivador das manifestações culturais da
cidade.
Podemos dizer que a aparição do grupo é um dos pontos altos da
história do teatro de Leiria. Já desde o nome da trupe, que homenageia
importante figura do teatro leiriense, vê-se o intuito, não de criar uma
manifestação nova, mas sim de ligar-se a uma tradição regional e nacional que
deveria ser, na opinião de Franco, mais arrojadamente cultivada.
Miguel Joaquim Leitão, que dá nome ao grupo teatral fundado por
Franco, nasceu em Leiria, em 1815, e foi diretor do Teatro São Pedro, assim
como proprietário do camarote número 1 da casa de espetáculos. Pouca
documentação existe sobre as peças que teriam sido lá encenadas e as que
foram conservadas referem-se apenas a “espetáculos de declamações”.
Sabemos, por outro lado, que, na cidade de Leiria, são vários os espaços
dedicados à atividade. Além do já citado, havia o Teatro do Relego, o da Palha
e do Farelo (ou do Sebo), conforme estudo de João Cabral (1980), sobre o
Teatro Amador em Leiria.
A primeira grande intervenção de Miguel Leitão teria sido a proposta de
construção do Teatro Dona Maria Pia, devido ao mau estado de conservação
do Teatro São Pedro. Neste último, o que é também indicativo de uma razoável
atividade teatral na cidade, desenvolveram-se as Sociedades Dramáticas de
Leiria e a Sociedade Dramática Recreativa Leiriense.
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A partir do ano de 1897, surge o Grupo Dramático Leiriense e a ele
sucedem-se outras trupes teatrais amadoras até a década de 1940.
Até que, em 1950, como já foi dito, é fundado o Grupo que será dirigido
por Miguel Franco e que fará, em suas primeiras encenações, mira na
recuperação dos clássicos vicentinos. Franco e o grupo realizam diversas
apresentações pelo país, procurando sempre os espaços abertos e/ou
históricos para suas montagens.
Miguel Franco e o grupo sentem efetivamente pela primeira vez o peso
das relações do mundo artístico com o regime salazarista e sua atuação
censória ao tentarem encenar a peça O Duelo, de Bernardo Santareno.
Estando já com a cenografia e os figurinos completos e pronta para ir à cena,
volta o requerimento de apresentação com a negativa da censura. A montagem
é proibida antes de sua estreia e nunca irá ao palco com o Grupo Miguel
Leitão.
Ainda jovem, Miguel Franco assumiu cargo diretivo no Ateneu
Desportivo de Leiria, associação a que levaria personalidades importantes da
cultura e da literatura portuguesa. Nos eventos, chamados de “Conversas de
sexta-feira à noite”, estiveram ministrando palestras, além de Bernardo
Santareno, amigo pessoal de Franco, Rogério Paulo, Luís Francisco Rebello e
Vitorino Nemésio.
Mais tarde, já em 1972, viria a organizar também os “Festivais de Artes
de Leiria”, cujo ponto alto seria a montagem do encenador brasileiro Luiz Tito
para a tragédia de Ésquilo, Os Persas, mais uma vez no Castelo de Leiria.
Enfim, resumindo o que se apresentou até aqui, um agitador cultural.
Homem alegre, descontraído e espontâneo no convívio, mas rigoroso em seu
trabalho, tinha uma concepção de teatro como algo que não se pode distanciar
de uma atitude quase instintiva de escrever e de encenar. Definia-se como
alheio a frases preconcebidas, alinhadas e de efeitos empolgantes. Falava de
teatro como de uma necessidade, como um imperativo de todos os homens em
torno da comunicação. Possivelmente, toda a experiência que tinha com as
teorias teatrais, até então, vinha da prática de ator e do contato com outros
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encenadores por quem foi dirigido nas inúmeras montagens teatrais de que
participou quando jovem.
Dessa aptidão, que nasce para unir o teatro ao desejo de
esclarecimento e de comunicação inerente aos homens, vem a relação
também com a história. Miguel Franco possui a percepção do fato histórico
como um acidente que deixará sempre marcas nas sociedades vindouras, no
comportamento humano e nas instituições e, talvez por esse motivo, valha a
pena ser revisitado.
Além disso, Franco acreditava que a arte deveria estar continuamente
próxima do povo. Sempre insatisfeito, julgava que o teatro deveria ir à busca do
público, organizando espetáculos que fossem, ao mesmo tempo, de
entendimento popular, mas que também operassem como ferramenta para
elevar a um outro patamar a sua percepção. Ou seja, um teatro que fosse um
instrumento didático, função maior do gênero para o autor. Crítico contumaz do
alargado distanciamento que se faz entre intelectuais e povo, Franco descrevia
a população portuguesa como uma multidão cada vez mais distanciada e
perdida daqueles que a deviam conduzir. E, ainda segundo ele, como a culpa
nunca era do povo, a missão de resgate e reconciliação era dos intelectuais e
dos homens da cultura.
Como se pode perceber, um posicionamento, em relação à educação
cultural do povo, muito semelhante à de Lênin. O líder comunista sustentava
que o verdadeiro conhecimento precisa ser ensinado ao proletário pelos
intelectuais revolucionários, ao contrário de outros pensadores marxistas, como
Lukács, por exemplo, que acreditava ser possível o aparecimento de uma
verdadeira consciência dentro da própria classe trabalhadora (FREDERICO,
1997).
Com todos esses elementos em mente, nasce a sua maior e mais
controversa obra, O Motim, baseado nos episódios da criação da Companhia
de Vinhos do Alto Douro.
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No dia 2 de dezembro de 1964, o Teatro Nacional D. Maria II3 é
consumido por um incêndio de grandes proporções. Inutilizado pelo fogo, o
teatro é abandonado pela Companhia Amélia Rey Colaço–Robles Monteiro que
prevê a estreia da temporada de 1965 para fevereiro, agora no Teatro Avenida.
O prédio do Avenida é reformado e recebe elogios por parte da
imprensa especializada da época. Uma sala de espetáculos confortável e bem
decorada, vigiada pelo busto de Almeida Garrett, que o incêndio do Nacional
não conseguira consumir, onde se lia uma faixa com a afirmação: “O Nacional
continua”.
Escolheu-se um original português para a abertura da temporada. O
primeiro aprovado pelo Conselho de Leitura do Teatro Nacional foi a peça tida
como estreia profissional do dramaturgo Miguel Franco, já conhecido pelos
lisboetas devido às passagens pela cidade com o teatro amador.
Faz-se a noite de abertura em um sábado, 6 de fevereiro de 1965.
Dirigido por Pedro Lemos, com figurinos e cenários de José Barbosa e com os
principais atores da Companhia Nacional, além da numerosa figuração
requerida pelo texto, sobe ao palco o primeiro trabalho profissional de Miguel
Franco nos teatros da capital do país.
Para a estreia da temporada, estavam presentes importantes homens
do governo português, posto que fosse este um dos grandes responsáveis pelo
financiamento da reforma do Teatro Avenida. Via-se na plateia, além do
presidente Américo Tomás4 e sua esposa, os ministros da Educação Nacional
e das Corporações e ainda aquele que seria, futuramente, o sucessor político
de Oliveira Salazar, o professor Marcello Caetano.
Lida a efeméride que abre o texto de Franco, a ação da peça transcorre
em três atos bastante delimitados no que toca ao enredo. Em um primeiro,
apresentam-se as personagens e os conflitos principais. Algumas personagens
3 Por muito tempo, “o Teatro Nacional foi gerido por sociedades de artistas que, por concurso,
se habilitavam à sua gestão. A mais duradoura foi a de Amélia Rey Colaço / Robles Monteiro
que permaneceu no teatro de 1929 a 1964. Em 1964, o Teatro Nacional foi ‘palco’ de um brutal
incêndio que apenas poupou as paredes exteriores. O edifício que hoje conhecemos, e que
respeita o original estilo neoclássico, foi totalmente reconstruído e só em 1978 reabriu as suas
portas.” (http://www.teatro-dmaria.pt/Teatro/Historia.aspx)
4 Américo de Deus Rodrigues Tomás, da União Nacional, foi o último presidente (chefe de
Estado) do Estado Novo Português, derrubado pela Revolução de 25 de Abril de 1974.
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fazem a descrição do que teria sido o motim, que acabara de ocorrer, pelo
ponto de vista das personagens das classes mais baixas e dos comerciantes
do Porto. O clima é de festa, pois até o momento o povo parece ter conseguido
o que queria, o fim do monopólio da Companhia sobre a venda dos vinhos
produzidos pelos vinicultores da região.
No segundo ato, começam as consequências do levante. Por ordem de
Sebastião José de Carvalho, está instalada uma alçada no Porto para
interrogatório e julgamento dos amotinados. Há uma grande centralização do
poder nas mãos do cruel escrivão José Mascarenhas, filho do presidente do
tribunal, João Pacheco Pereira Vasconcelos. Alguns acusados são
interrogados de forma brutal e outros são mesmo torturados.
No terceiro e último ato, os condenados aguardam a execução e o
clima, lúgubre e funesto, em nada mais lembra os festivos homens do primeiro
ato. São feitas referências a um “mundo ao contrário” e ao homem como “coisa
com razão”, assim como ao destino dos que não se sujeitam ao poder
totalitário. A peça termina com uma espécie de aforismo, que conclama a
resistência: “Um homem sem medo não morre!” (FRANCO, 1965, p. 142).
No dia posterior, os jornais fizeram extensa louvação às performances
dos atores, do encenador e ao texto de Miguel Franco, que foi chamado ao
palco e recebeu os aplausos junto com a direção da companhia, na pessoa de
Amélia Rey Colaço. Entre os atores mais citados pelas colunas dos periódicos
dedicadas ao teatro estão Raul de Carvalho, como Tomas Pinto “cheio de
vibração e de grandeza de alma”; Varela Silva, como a “violenta personagem
do Dr. José Mascarenhas” ; Manuel Correia, como o Profeta, “um velho ébrio
cheio de humanidade”; e, o mais enaltecido, Canto e Castro, como o Advogado
Nicolau Araújo, que chega a ser aplaudido em cena aberta.
Ressalvando-se algumas críticas à “tessitura dramática” ou à
encenação de Pedro Lemos, as expressões são uniformes em transmitir o êxito
da apresentação. “Uma noite para entrar para a história do teatro” e “aplauso
unânime”, pelo Diário da Manhã. Um evento “destinado a um grande êxito de
bilheteria”, conforme o Diário de Lisboa. Na coluna “Teatro Português”, do
mesmo periódico, descreve-se a apresentação como um “conjunto muito
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elevado”, que mereceu “muitos e demorados aplausos”. Alguns dias depois,
Antonio Augusto Menano, em sua “Leitura de Teatro”, do Jornal de Notícias,
da cidade do Porto, concede a Miguel Franco “um lugar na primeira fila dos
nossos dramaturgos contemporâneos”.
J. Reis, na coluna “Primeiras Representações”, elogia como “um
espetáculo digno, (que) certamente vai chamar público novo ao Avenida e
agradar aos habituais frequentadores”. Em outra seção, o jornalista divulga: “O
Motim representa-se todas as noites às 21 e 45, realizando-se no sábado a
primeira tarde a preços reduzidos”.
No entanto, nem essa próxima apresentação, prometida a preços
módicos, chegou a ser realizada, nem o “novo público” teve muitas
oportunidades de ver a peça, pois, quatro dias depois, as apresentações foram
brutalmente suspensas.
Tempos depois, um bilheteiro do Teatro Avenida contaria a Miguel
Franco que, ao fim do espetáculo de estreia, o Presidente Tomás e os
ministros de estado desciam a estreita escadaria que vinha dos camarotes
quando Marcello Caetano disparou: “Então agora o governo subsidia motins?!”.
Às 14 horas do que seria o quinto dia de apresentações, sob o
testemunho de atores que chegavam ao trabalho e de espectadores que
aguardavam a abertura das bilheterias, a P.I.D.E. invadiu a casa de
espetáculos, intimou os bilheteiros a suspenderem a abertura dos guichês,
rasgou e confiscou os cartazes da peça.
Tornava-se claro que o conflito do tempo histórico da peça acabava por
desvelar outros conflitos que, mesmo estando parcialmente sufocados, fremiam
por vir à superfície. Forçoso dizer que os interrogatórios conduzidos pelo
desumano escrivão da alçada assemelhavam-se por demasia aos atrozes
inquéritos da P.I.D.E, assim como a situação da população portuense do
século XVIII, calada pelos emissários de Sebastião José de Carvalho,
aproximava-se muito da situação vivida pela plateia portuguesa na segunda
metade do século XX.
Já de volta a casa, Miguel Franco recebe o telefonema da empresária
do Nacional que solicitava sua presença com urgência em Lisboa, para tentar,
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junto às instâncias oficiais, remediar a proibição. Porém, os mecanismos da
censura estavam em desacordo. A peça, apesar de ter sido aprovada pelo
Conselho de Leitura do Teatro Nacional, órgão independente da censura,
estava agora proibida pela Censura Teatral e nada a faria voltar ao palco do
Nacional ou do Avenida. Desabava então, pela segunda vez e mais
pesadamente, a repressão sobre a arte de Miguel Franco. O próprio teatro foi
fechado, sob o pretexto de que faltava ainda concluir as obras, e O Motim não
mais voltaria ao Avenida.
A proibição foi profundamente sentida também pelos homens da cultura
e da resistência ao regime salazarista. Num protesto, escrito e dirigido ao
Ministro da Educação Nacional, citando Almeida Garrett, afirma-se que o teatro
é índice do nível cultural de um povo e pede-se a “imediata abolição das
restrições que pesam sobre Teatro Português” (Rebello, 1977, p. 162).
Assinam o protesto mais de cem pessoas e, entre os nomes mais conhecidos,
estão os de Luiz Francisco Rebello, Sttau Monteiro, Bernardo Santareno, José
Cardoso Pires, Alves Redol, Rogério Paulo, Romeu Correia, Mario Soares,
Natália Correia, Sophia de Melo Breyner Andresen, Álvaro Salema, Maria
Teresa Horta, João Gaspar Simões, Alexandre Pinheiro Torres, Carlos de
Oliveira, além do próprio Franco.
Nesse mesmo ano, a S.P.A., Sociedade Portuguesa de Autores, foi
fechada e teve a sua sede depredada pela P.I.D.E por atribuir a José Luandino
Vieira, escritor e ativista angolano, preso em Cabo Verde, o Prêmio Camilo
Castelo Branco.
Dias depois, no periódico Correio de Nisa, Ruy Miguel fala em sua
crônica, não mais sobre a peça, mas sobre o texto de Franco. Era comum uma
peça ter a sua representação proibida, mas poder ser lida livremente5.
Percebe-se ali uma forma de discordar da proibição da peça por meio de uma
adesão ao ilusionismo histórico6 proposto pela obra. Segundo o jornalista, o
que se veria no texto seria apenas história, no passado, e, mesmo assim, o que
ela nos diz é que um homem abusou da confiança nele depositada pelo
5 Esse fato é mencionado por Rebello (1977, p. 21): “todos os anos se publicam (...) peças de
alto nível artístico, às quais é todavia sistematicamente recusado o acesso ao palco”.
6 Usa-se aqui a classificação proposta por Spang (1988).
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governo. Mais elogios à “teatralização perfeita de um clima dramático”, mas
apenas isso. E a peça demoraria mais vinte anos para voltar à cena.
A partir da década de 60, Miguel Franco envereda pela carreira de ator
cinematográfico e faz diversas participações no cinema, várias delas em
adaptações de romances neorrealistas. Estão em sua filmografia os filmes
Crime da Aldeia Velha (1964) e O trigo e o joio (1965), ambos de Manuel
Guimarães; Domingo à tarde, de Antonio Macedo (1966); O cerco, de Antonio
da Cunha Telles (1970); Lotação esgotada, de Manuel Antonio (1972); A
fuga, de Luis Felipe Rocha (1976); O rei das berlengas (1978) e Manhã
submersa (1980), ambos de Lauro Antônio e Vidas, novamente com Antonio
da Cunha Telles (1984).
Em 1973, Franco trabalha na publicação de A legenda do cidadão
Miguel Lino, que recebe o Prêmio Almeida Garrett, do Ateneu Comercial do
Porto. A peça é publicada pela Editora Inova, em uma coleção intitulada
“Teatro para as Quatro Estações”, e recebe boas resenhas em periódicos e
revistas, mas não chega a ver o palco. O TEP, Teatro Experimental do Porto,
por duas vezes tenta a liberação da encenação, mas em vão. Amélia Rey
Colaço tenta também a aprovação da peça para levá-la ao palco do Teatro
Capitólio (o Avenida ruíra já em 1967, como o Nacional, sob as chamas de
outro incêndio), mas nada alcança.
A legenda do cidadão Miguel Lino, peça que havia sido composta em
1969 e publicada em 1973, precisará esperar o 25 de abril para subir à cena.
Só em 1975, com a encenação de Herlander Peyroteo a peça será
apresentada no Teatro Maria Matos7.
A peça, além de fazer homenagem a personagens da infância de
Franco, como o tocador de ocarina chamado Cecílio8, trata de um período
bastante conturbado da história portuguesa, o das invasões francesas, no
século XVIII.
7 A construção do Teatro decorreu entre 1963 e 1969, com um projeto da autoria do Arquiteto
Barros da Fonseca e abriu as suas portas a 22 de Outubro de 1969. Em 1982, o teatro foi
adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa. (http://www.teatromariamatos.pt/gca/?id=21)
8 Referência ao Cecílio Flor, que aparece nos contos inéditos e não datados do autor.
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No frontispício, é reproduzida uma das páginas escritas por Erwin
Piscator, autor de Teatro Político9. Ela delata as intenções da peça e,
certamente, de todo o teatro de Miguel Franco:
A missão do teatro de hoje não pode consistir apenas em
relatar acontecimentos históricos apresentados tal e qual.
Deve tirar desses acontecimentos lições válidas para o
presente, adquirir um valor de advertência mostrando
relações políticas e sociais fundamentalmente
verdadeiras e, tentar assim, na medida de suas forças,
intervir no curso da história (PISCATOR apud FRANCO,
1973, p.1).
Piscator, diretor e produtor judeu alemão nascido em 1893, parece
exercer papel importante na concepção teatral de Franco.
Luiz Francisco Rebello (1973), na Revista Colóquio Letras, fala da
grandeza do drama composto por Miguel Franco, nos seguintes termos: “dos
mais ricos e apaixonantes da nossa literatura dramática contemporânea, não
só pela urgência do tema como pelas suas virtualidades cênicas”. Mais uma
vez, como já dissera o próprio Rebello, teatro para ser lido, mas, de acordo
com a censura, impossível de ser encenado.
Franco trabalhou também em obras além das históricas. Algumas delas
terminadas, outras que ficaram por finalizar, outras ainda que ficaram nos
primeiros rascunhos.
Publicada em 1974, pela Sociedade Portuguesa de Autores, temos
Uma visita muito breve, peça de teatro em um ato, que, com a presença do
autor foi encenada na Escola Secundária Domingos Sequeira, na cidade de
Leiria, onde Franco havia estudado, a então Escola Industrial e Comercial de
Leiria.
Já em 1980, sai pela Moraes Editores, O capitão de navios, com o
subtítulo de teatro de divertimento em 3 atos. É de se destacar nessa
composição, a presença de um personagem “Narrador”, remetendo a um
componente do teatro épico. O capitão de navios mereceu menção de Carlos
Porto (1981). Apesar de já findo há anos o salazarismo, a reclamação de Porto
no artigo em que procura fazer um balanço do teatro no ano de 1980,
9 Teatro Político foi publicado no Brasil pela Civilização Brasileira em 1968.
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assemelha-se muito às antigas queixas: ainda que muitas peças tenham sido
escritas, poucas estão sendo encenadas. Além da de Franco, a que chama de
comédia de costumes, o autor comenta peças de Romeu Correia, Jaime
Gralheiro, José Abelaira e José Cardoso Pires.
Miguel Franco cultivou também a poesia e as narrativas curtas. Sua
obra poética publicada resume-se ao volume de Quinta-Feira e outros
Poemas, de 1962, publicado pela Coimbra Editora.
Ao contrário do que poderíamos esperar, seus poemas não são
panfletários ou diretamente políticos, embora haja alguns mais diretos, como o
“Estoico” cujos versos lembram as falas de personagens de O Motim. No
poema, o eu-lírico ordena: “Não chores nunca, rapaz! / Se a ferida é funda,
aguenta / Que o chorar só acrescenta / E aumenta / A fraqueza que isso faz!”
(FRANCO, 1962, p. 50). Há também poemas do cotidiano, de desilusão
amorosa e metapoemas.
Mas a vida de O Motim ainda não estava encerrada. Em, pelo menos,
três grandes ocasiões ainda voltar-se-ia a fazer reverência à coragem do texto
de Franco.
Após o 25 de abril, os jornais de Lisboa publicam integralmente um
comunicado de Amélia Rey Colaço, em que ela anuncia a participação da
Companhia em um movimento de “renascer do Teatro Português das cinzas da
censura”. Essa participação se materializaria por meio de um “desagravo”
dirigido a todos os atores que, durante os anos de ditadura, passaram pela
companhia e foram prejudicados pelo autoritarismo do governo, à própria
Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, aos homens que oficialmente
haviam autorizado a encenação de uma peça, depois retirada brutalmente de
cartaz, e, principalmente, ao autor da uma peça, de “valor incontestável”
injustamente perseguido e censurado.
Amélia Rey Colaço cita no comunicado uma dezena de peças para as
quais propusera sistematicamente a montagem, mas sempre lhe fora negada a
possibilidade. Entre as proibidas, ela destaca duas de Brecht, duas de
Bernardo Santareno, além de outras de Stau Monteiro e Natália Correia.
Porém, nesse momento de abertura política, em que assumia a direção do país
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a Junta de Salvação Nacional, a Companhia escolhe levar ao palco a
emblemática voz daqueles que se recusaram a calar diante dos arbítrios do
poder totalitário. Pouco mais de um mês após a Revolução dos Cravos, voltava
ao palco O Motim, de Miguel Franco.
Em agosto de 1975, um segundo projeto leva a peça de Franco a um
público muito mais amplo que o do teatro. A divisão de Teatro da RTP do
Norte, nas mãos do realizador e membro do Teatro Experimental do Porto,
Correia Alves, encena um teleteatro com o texto de O Motim. A escolha da
obra de Franco se deu por duas razões, segundo o diretor. Primeiro, por ser
assunto do Porto, segundo por ser “muito atual, pois sendo uma coisa que se
passou há duzentos anos, é um assunto que ainda não está resolvido (...) é um
grito do povo contra as coisas estabelecidas e que estão erradas” 10.
E, por fim, em 15 de julho de 1985, quase vinte anos depois dos
vergonhosos acontecimentos que sucederam a estreia de O Motim, no Teatro
Avenida, a peça volta a ser encenada por ocasião das homenagens prestadas
a Miguel Franco, em Leiria.
A Câmara Municipal, considerando justa a homenagem a um homem
que prestou grandes serviços à cultura da cidade, planeja uma série de
eventos ligados à vida, à obra e às contribuições de Franco à cultura leiriense e
portuguesa.
Entre os dias 7 e 31 de julho de 1985, no teatro José Lúcio da Silva,
com entradas francas, são projetados os filmes dos quais Franco participara
como ator. São apresentados Domingo à tarde, O cerco, O rei das
Berlengas, Manhã submersa, A culpa e Vidas. Uma exposição sobre as
relações de Franco com a sua cidade é organizada no átrio do mesmo teatro.
Já na sala de conferências da Região de Turismo de Leiria, são
apresentadas várias palestras que têm o trabalho de Miguel Franco como
objeto. Os diretores dos filmes acima referidos, Antonio Cunha Telles, Antonio
Campos e Lauro Antonio realizam a conferência O cinema português
contemporâneo, tendo João Guerreiro como moderador.
10 Entrevista de Correia Alves a A.S. do periódico Tele-Semana, de 22 de agosto de 1975.
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Com a participação do crítico, dramaturgo e tradutor teatral, Carlos
Porto, do crítico, escritor, encenador e professor Jorge Listopad e do ator Mario
Jacques, membro da Companhia do Teatro Nacional que encenara O Motim,
no Avenida, em 1965, uma outra conferência tratava do papel de Miguel Franco
na dramaturgia portuguesa.
Por fim, relevantes nomes do teatro português amador e profissional
trataram do papel de Franco como animador cultural. O próprio dramaturgo
participou desse último evento.
O Jornal de Leiria dedicou uma edição única e especial aos eventos
de julho de 1985, em que se destacam comunicados de Luiz Francisco
Rebello, Jorge Listopad, José Valentim Lemos, além de uma entrevista que
Franco concedeu a João Guerreiro e os relatos de Carlos Fragateiro sobre os
acontecimentos que envolveram a encenação de O Motim.
Em 1985, como num eterno retorno, um texto de Miguel Franco volta
ao mesmo espaço da Igreja da Pena, no Castelo de Leiria. Esse seria, sem
dúvida, o ponto alto das homenagens ao dramaturgo leiriense. Em montagem
do TELA, Teatro Experimental de Leiria, sob a direção artística de Carlos
Fragateiro, que viria a ser diretor do D. Maria II e professor da Universidade de
Aveiro, O Motim volta ao palco, dessa vez na cidade natal de seu autor.
Interessa ressaltar que a menção de Fragateiro ao texto, no Jornal de Leiria,
traz mais uma vez, a questão da história como elemento didático e
representativo do presente, pois, diz o diretor que, hoje, “novos Mascarenhas
constroem, custe a quem custar, novas teias” semelhantes às construídas no
passado.
Assim como o teatro de Franco voltava a Leiria, o enredo da sua mais
importante peça voltava a assumir novos significados, ainda que à revelia de
seu autor. Perceber esse “eterno retorno” é, como que, uma maneira de
aprender com o passado. Apesar de a história não se repetir literalmente, os
conflitos humanos e sociais voltam a ocorrer por motivos, às vezes,
semelhantes. Assim, o entendimento dos eventos do presente pode ser
alcançado por meio da reflexão proporcionada pelo teatro histórico. Essa é
uma das propostas do teatro de Miguel Franco
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Nessa última montagem, assiste-se, em derradeira oportunidade, a
participação de Miguel Franco como a personagem José Fernandes da Silva, o
Juiz do Povo, alcunhado de “Lisboa”.
Completava-se assim parte da história desse leiriense, nascido em 14
de abril de 1918. Trajetória repleta de ação cultural, mas também de
participação política, por certo, em muitas oportunidades, elementos
indissociáveis.
Irmão mais novo de um membro do núcleo clandestino de implantação
da república, Franco fez parte do Grupo de Apoio ao Partido Comunista,
organização estruturada de combate clandestino ao regime salazarista. Foi
membro também da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Econômico
e Social), esperando que Marcelo Caetano tivesse a força necessária para
formar um governo de centro e acabar com o fascismo. Porém, com o desgosto
da guerra colonial, rapidamente se desencantou com a organização. Participou
ainda do Movimento Democrático Português, ligado ao Partido Comunista e,
depois da revolução, ao Partido Socialista.
Além disso, um humanista, no sentido de um homem voltado ao
espírito literário e democrático. Intitulava-se “ateu militante de combate”, apesar
de privar de excelentes relações com o clero de Leiria, a quem dizia que “no
dia em que começasse a ser crente, era o ‘sinal’ da existência de Deus”.
Franco veio a falecer em 19 de fevereiro de 1988, em Queluz. Em
2003, ao centro cultural construído na cidade de Leiria é dado o nome de
Teatro Miguel Franco.
Nessas anotações biográficas, estão resumidos os motes que
impulsionam a vida de Franco, não só como dramaturgo e ator, mas também
como cidadão: a cultura é parte integrante e indispensável na vida de um país,
mas que ela seja, sempre, motivada e pautada pela realidade social e histórica,
que nela encontre o seu ponto de partida, mas que a ela volte e lá interfira e,
assim, contribua com a sua evolução. Sem dúvida um homem de teatro, talvez
não na acepção ordinária do termo, designando um profissional da categoria ou
estudioso da dramaturgia. Mas sim um homem que não conseguia se ver sem
o teatro, nem conseguiria reconhecer um país sem ele, embora tenha sofrido,
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como que parafraseando Garrett, a ausência de civilização necessária ao seu
desenvolvimento.
Bibliografia
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1962.
FRANCO, Miguel. O Motim. 2º edição. Lisboa: Europa-América, 1965.
FREDERICO, Celso. Lukács, um clássico do século XX. São Paulo:
Moderna, 1997.
PORTO, Carlos. O teatro desde a presença. In.: LOPES, Oscar; MARINHO,
Maria de Fátima (dir.). História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Alfa, 2002,
v. 7, p. 556 a 573.
PORTO, Carlos. “Balanço do ano literário de 1980 em Portugal / O texto
teatral”. In: Revista Colóquio/Letras. Balanço, n.º 60, Mar. 1981, p. 46-51.
REBELLO. Luis Francisco. Combate por um teatro de combate. Lisboa:
Seara Nova, 1977.
REBELLO, Luiz Francisco. “Recensão crítica a Legenda do Cidadão Miguel
Lino, de Miguel Franco” In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º
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REBELLO, Luiz Francisco. 100 anos de Teatro Português (1880-1980). Porto:
Brasília Editora, 1984.
SPANG, Kurtis (ed.). El drama histórico. Pamplona: Ediciones Universidad de
Navarra S.A., 1998.
http://miguel-lino.blogspot.com/
Recebido em: 31-mai Aprovado em: 30-jun
in
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