A
ARTE PERANTE A AMOTINAÇÃO
A
razão de tudo o que formatou em boa parte a peça de teatro O MOTIM, vem das
queixas contra as liberdades individuais na venda de um decisivo produto local,
o vinho. Proprietários e gananciosos da centralização, das matérias e do seu
comércio, conquistaram, sob o manto doloso dos políticos
A
Companhia Geral da Agricultura das Vinhas — pela qual se encerram tascas e
bebedores, lugares da convivialidade comunitária, corte laminar numa concepção
de solidária do viver repartido nas distâncias e nas proximidades. E um dia,
entre os murmúrios de dentes cerrados, uma revolta se congemina: e assim o povo
invade as ruas, amotinado, grandes e pequenos lances contra a Companhia. A
alegria espalha-se na aparente reconquista de um comércio distribuído em
rotinas seculares e no júbilo do próprio risco. Só que o levantamento foi
abafado, com as devidas orientações quanto ao julgamento e a exemplares
castigos. Houve uma enorme concentração de poderes nas mãos cruéis do escrivão
José Mascarenhas, filho do presidente do tribunal, João Pacheco Pereira
Vasconcelos. Alguns acusados do motim são interrogados com brutalidade e mesmo
sob tortura. E o processo arrasa quase tudo o que passa sob um tribunal insano,
condenados aguardando a execução, o morte, o fim, tudo num clima lúgubre e
funesto.
No
outro dia torna-se imperativo abrir o tempo de nojo e continuar uma longa,
quase intemporal, força de resistência. Mas esta verdade histórica, em parte
ficcionada como metáfora sobre as condições sociais da vida humana, havia sido
instaurada em peça de teatro, o MOTIM, de Miguel Franco. Termina nas brumas que
baixam sobre todas as tragédias e, desta fez, com uma espécie de aforismo ou
proclamação resistente: «Um homem sem medo não morre».
As artes pertencem
todas à mesma raiz da natureza humana, existência e espírito, podem sempre
relacionar-se da diferença à semelhança, entre o que a memória
transfere para a palavra ou para a imagem, no tempo suspenso da pintura ou na
percepção conduzida pela duração representativa, através do teatro, da música ou do cinema. Maria João
Franco, abordando pela forma plástica certo ideia expressiva, dolorosa, da peça
O Motim, corre em tortura a demora e o sentido de uma mensagem poderosa no
superior risco de plasmar sobre a tela, sem qualquer obviedade ilustrativa, o
supremo delírio das máscaras inertes, presas fora do tempo mas levando cada
mensagem pictórica, num grito expressionista e lírico, para lá dos muros ou dos
longos olhares narrativos: porque os factos e as personagens que ela manipula,
na derradeira tragédia das condenações, sob a iniquidade do poder espúrio,
engloba a beleza de personagens na linha do protoplasma,
antes e depois de serem, na revolta e na dor, gente viva. Numa encenação sacra
e poderosa, as telas encerram e desvendam, por cada contemplação nossa, passos
da terrível sentença da Alçada no impúdico desfecho pela morte iníqua, entre
carrascos mumificados e gritos de almas a sangrar. Não é apenas uma performance plástica, sob tutela
teatral, é sobretudo a marca das sensações que atravessaram este outro lado da
criação, a mancha, a sombra, a transparência, o mundo humano em denegação,
suspenso parietalmente, como em crucificação, de súbito num silêncio de pedra,
mortal e acusador.
ROCHA
DE SOUSA
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