ALTAR DOS DIAS
de
inaugura a 14 junho de 2014
na ARC16 - Rua de Sã Luis 82, Faro
pelas 19 horas
ALTAR DOS DIAS
Olhamos, assombrados. Olhamos e assalta-nos a incerteza da
percepção, num desejo de baixar as pálpebras. Olhamos assim, em instantes de
cegueira, a sombra que nos esconde o visível. Decidimos então não baixar a
cabeça, não fechar os olhos, e os fantasmas desta pintura, por vezes
petrificados, por vezes renascendo em raízes de árvores tombadas, iluminam-se
dentro de nós, passando pela retina e selecionando-se no bloco cerebral da
visão, entre milhões de outras imagens decorrentes do que percepcionamos dia a
dia, porventura no fundo dos próprios sonhos.
De uma aparência por vezes sombria, esta arrebatadora
pintura de Maria João Franco, aliás como nos próprios desenhos, agrega em cada
apresentação conjuntos de iluminações — um intenso desejo de clarificar as
metamorfoses interiores do ver e do ser, memória trágica e romântica que emerge
dos nervos sob a pele e se propaga num espaço feito de coisas quase sempre
inomináveis, indiciando diversas aparições do mundo, gente e bichos, corpos
aparentemente amputados ou de cabeças ao alto, talvez gritando, como que
mostrando o vale torturado antes da vida emergir dessa cova cósmica. Tudo
parece lítico, modelado por uma civilização pós apocalipse, mas o saber
daquelas forças registadas na tela obriga-nos a ressuscitar depois do próprio
século XX. E então tudo se aproxima do olhar aberto, da obra aberta, ainda que
ligeiramente tocada por morfologias de algum Prometeu agrilhoado, de algum
Cristo crucificado, de algum Dilúvio capaz de arrancar quase todas as raízes da
terra, deixando-as escancaradas e de hastes ao alto. É verdade que esta visão
parece não exprimir a arte destroçada do século XX, essa colossal «soma de
destruições», mas é daí e da Bíblia relida que tudo se espalha por este mundo
nocturno a crescer entre desastres para nos atormentar um pouco ao jeito das
obras aqui expostas, de ontem ou de hoje, denegando a tecnologia de ponta e
gritando, da dor dos cortes e das metamorfoses kafkianas, o medo do colapso na
contracção futura do Universo sobre si mesmo, até ao nada.
A inquietante paisagem que estes quadros formam entre si,
agrupáveis por partes de possíveis semelhanças morfológicas e gráficas, é uma
espécie de memória do futuro, uma forma humana fechada sobre si ou sentada em
concha, na hora de um parto solitário; é também a narrativa da crise social,
farrapos de gente, enforcados suspensos do nada, cãos ou lobos farejando por
baixo; e a par dos riscos que reescrevem gestos, é ainda o indício gráfico do
grito ou do chamamento; depois (ou antes) os troncos tombados de árvores
centenárias, talvez petrificadas no espaço onde as rochas ficaram nuas,
texturais, endurecidas pela luz forte dos incêndios em volta.
Claro que a arte não explicada nada, nem mesmo quando
ilustra as encenações do visível ou retrata impossivelmente os santos que nunca
existiram: ainda assim é dentro da sua reinvenção das coisas e dos seres que
podemos palpitar ao sentir as rasuras que nos fazem prever o infinito ou nos
inventam, a morte pelo homem na crucificação reformulada por Grunewald: é desse
universo que vem o futuro, com os seus mortos de ontem.
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