A VIOLÊNCIA RITUAL EM O CRIME DA ALDEIA VELHA.
O PODER E A REPRESSÃO REPRESENTADOS NO TEXTO DE BERNARDO
SANTARENO
E NO FILME DE MANUEL GUIMARÃES
Resumo: Em 1934, na aldeia de Soalhães, em Marco de Canavezes, uma mulher foi queimada viva por, supostamente, estar possuída pelo diabo, tendo os seus executantes em seguida rezado para que a vítima ressuscitasse. Mais de vinte anos depois, em 1959, esta história foi escrita para teatro por Bernardo Santareno, que também a adaptaria para cinema, para o filme O Crime de Aldeia Velha, realizado por Manuel Guimarães, em 1964. Obra inicial do Cinema Novo Português, O Crime de Aldeia Velha configura um olhar, de Bernardo Santareno, sobre os rituais do poder e a repressão social sobre a liberdade e a individualidade, além de constituir uma representação dramática e cinematográfica do Portugal do Estado Novo, por parte de criadores que foram, eles próprios, alvo de censura. Este trabalho procura abordar a forma como o poder é representado nesta obra fílmica. Palavras-chave: Bernardo Santareno, Manuel Guimarães, O Crime de Aldeia Velha, censura, cinema Email: jorgepalinhos@ua.pt Introdução O Crime de Aldeia Velha é um caso curioso na história do cinema português. Projeto de Cunha Telles, um dos principais promotores do Cinema Novo Português, que para o concretizar foi buscar um realizador caído em desgraça no regime, Manuel Guimarães, que, por sua vez, procurou com esta obra resgatar os fiascos comerciais e críticos anteriores que haviam frustrado a sua promessa inicial como realizador singular no panorama cinematográfico português. Adicionalmente, esta obra associa dois autores, um de teatro e outro de cinema, respetivamente Bernardo Santareno e Manuel Guimarães, que durante a sua atividade criativa mostraram uma série de afinidades ao nível da criação artística, nomeadamente um notável interesse pela situação das camadas mais desfavorecidas da população portuguesa e uma aproximação às estéticas neorrealistas que dominavam a Europa do seu tempo. Une-os também o facto de 1Colaborador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, docente da Escola Superior Artística do Porto. Bolseiro da FCT. Atas do II Encontro Anual da AIM 438 terem sido dois criadores cuja obra foi fortemente afetada e cerceada pela Censura no Estado Novo. A questão que me coloquei como ponto de partida para esta investigação foi a de que modo é que a experiência prévia dos principais autores do filme, Santareno e Guimarães, poderia ter-se infiltrado neste filme, e de que modo é que a obra poderia traduzir a visão que ambos tinham do regime político que vigorava no Portugal da altura. A censura no teatro e no cinema É seguro que o Estado Novo desenvolveu políticas de controlo e direção das artes, nomeadamente por via da conhecida “Política do Espírito” de António Ferro, e é também indubitável que uma das principais ferramentas para esse controlo da produção artística passou pela existência da Censura. Sendo a Censura transversal às várias artes e ao jornalismo, é relativamente consensual que o teatro e o cinema foram as áreas artísticas mais afetadas por ela. Ambas as atividades eram alvo de censura prévia e posterior, a contrário, por exemplo, da literatura, que era apenas alvo de censura a posteriori. A isto somava-se que ambas as áreas dependiam na altura, como ainda dependem hoje, do financiamento público para as suas atividades, e de autorização para a exibição das obras. Tal tornava ambas extremamente dependentes do favor dos censores e da adequação das suas práticas aos ditames oficiais. Por exemplo, Cândido de Azevedo descreve do seguinte modo a censura ao teatro: Em relação ao Teatro, a fiscalização desta actividade processava-se a vários níveis: iniciava-se pela análise dos textos das respectivas obras, mesmo que não tivessem sido previamente publicados, como frequentemente era o caso, e dessa tarefa se encarregava o Gabinete de Leitura do SPN/SNI; prosseguia através da Inspecção Geral dos Teatros, a quem competiu, entre 1927 e 1945, censurar as peças antes da sua subida à cena, e de quem dependia também a autorização para a realização dos Jorge Palinhos 439 espectáculos (...) e culminava de algum modo através da política de subsídios concedidos, ou negados, pelo Fundo do Teatro às companhias teatrais para representarem esta ou aquela peça de teatro. No caso do Teatro Nacional, o representante do governo – durante vários anos designado Comissário do Governo – e, a quem, mais tarde, seria atribuída a categoria de Director, tinha igualmente a função de censor, em primeira linha (Azevedo 1999, 179-180). Estes procedimentos censórios afetaram profundamente não só a carreira de Bernardo Santareno, como também, na área do cinema, a de Manuel Guimarães, como passarei em seguida a demonstrar. Bernardo Santareno Bernardo Santareno era o pseudónimo de António Martinho do Rosário, nascido em Santarém em 1920. Era médico, profissão que exerceu junto da frota bacalhoeira portuguesa, o que lhe permitiu um acesso privilegiado à realidade de vida dos pescadores portugueses. Tal vivência traduziu-se numa visão desencantada sobre as condições de existência das populações portuguesas mais humildes, que iam contra a visão idílica que o regime tentava fixar, e que iria fomentar os conflitos com a censura que Santareno iria manter na sua carreira. A sua carreira literária, justamente, começou pela publicação de poesia. No entanto, o autor só obteve notoriedade pública com a publicação, em 1957, em edição de autor, de um conjunto de três peças de teatro. Uma dessas peças era intitulada A Promessa e despertou o interesse de António Pedro, um dos mais inovadores e importantes encenadores portugueses do século XX, que então dirigia o Teatro Experimental do Porto. Pedro decidiu levá-la à cena desde logo, tendo a peça subido a palco, pela primeira vez, a 23 de Novembro de 1957, no Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Todavia, a exibição da peça gerou um escândalo ao nível nacional, tendo provocado campanhas dos jornais de época e boicotes por parte dos meios católicos mais conservadores, ofendidos pelas suas sugestões sexuais relativamente explícitas e pelas práticas religiosas de índole pagã. A peça Atas do II Encontro Anual da AIM 440 acabaria por ser precocemente interrompida devido a essas pressões, embora muito posteriormente fosse reposta, a 11 de Maio de 1967, no Teatro Monumental de Lisboa, e tivesse sido também, mais tarde, adaptada ao cinema por António de Macedo. Toda a situação foi suficiente para gerar uma forte vigilância do dramaturgo por parte da Censura. Havia certamente razões para esta suspeita. As primeiras peças do autor eram influenciadas pela estética de Federico García Lorca, dramaturgo e poeta espanhol assassinado pelas forças franquistas, muito próximas do regime português. E Santareno, nas suas peças, refletia uma visão do país e do povo português muito distante daquela que o regime promovia. Além de que a vida do próprio autor, homossexual discreto e membro do Partido Comunista, despertava também numerosas desconfianças. Não admira portanto que, apesar de Santareno ter publicado outras peças, uma das quais O Crime de Aldeia Velha, a pressão sobre a sua obra foi de tal ordem que o autor quase deixou de se preocupar em adequar as suas peças para o palco, descrente que elas pudessem ser levadas à cena, escrevendo-as antes para serem lidas, segundo uma lógica de literatura dramática. A década de 60, afirma Luiz Francisco Rebello, corresponde a uma maior consciencialização e empenhamento político por parte de Santareno. Este começou a manifestar cada vez maior influência do Teatro Épico, de Bertolt Brecht, autor então proibido em Portugal, e as suas peças tornaram-se mais intensamente políticas, como se nota em O Judeu, a sua peça inspirada no processo inquisitorial do dramaturgo luso-brasileiro António José da Silva, durante o século XVIII, na qual a personagem do inquisidor-mor é claramente uma alusão a António de Oliveira Salazar. Esta é a década também em que Santareno vai colaborar na adaptação da sua peça para o cinema e é indubitável que o seu trabalho de escrita para o filme vai refletir tal tendência. Manuel Guimarães Manuel Guimarães foi pintor e cenógrafo, assistente de realização de Manoel de Oliveira em Aniki-Bobó e de António Lopes Ribeiro, entre outros. Foi uma das Jorge Palinhos 441 grandes esperanças do cinema português para a segunda geração, depois de Manoel de Oliveira e antes do surgimento do Cinema Novo português. Afirma Jorge Leitão Ramos (1989, 191) que o seu primeiro filme, Saltimbancos, foi a longa-metragem que o projetou como esperança do cinema. Nesse filme traduzia-se o neorrealismo italiano, então em todo o seu vigor, que no filme era então adaptado ao contexto português. O neorrealismo era já uma corrente muito forte em Portugal ao nível da literatura e das artes plásticas, mas ainda não tinha qualquer expressão no cinema. Não admira, portanto, que os grupos neorrealistas, que tinham como figuras de proa Alves Redol, José Cardoso Pires, Piteira Santos, Fernando Namora, Luiz Francisco Rebello, etc., tivessem ativamente promovido o filme e acabassem por associar o seu realizador às correntes oposicionistas que tanta desconfiança despertavam no regime. Não admira, portanto, que, tal como Santareno, Guimarães rapidamente se tenha visto sob a mira da censura. O seu filme posterior, Vidas sem Rumo, escrito em colaboração com Alves Redol, foi profundamente mutilado e a sua estreia em sala, em 1956, um fiasco. Outro filme do mesmo realizador, de inspiração documental, Nazaré, foi também desfigurado pela censura prévia, segundo constata Paulo Cunha (2007, 86). Um desvio para o cinema comercial, na forma de A Costureirinha da Sé, valeu ao realizador críticas por parte das elites culturais, que contribuiriam ainda mais para o seu isolamento. Apesar disso, e talvez como testemunho do reconhecimento que os cineastas do Cinema Novo tinham para com Guimarães, Cunha Telles chamou-o nessa altura para realizar O Crime de Aldeia Velha e O Trigo e o Joio. Leonor Areal descreve Guimarães como “nosso único realizador neorealista” e “o mais sacrificado de todos os realizadores, aquele a quem a censura mais cortou os filmes”, distinguindo-se a sua obra “pelas opções temáticas, suscitando assuntos e personagens marginais na sociedade e, segundo, por uma atitude que, ao invés dos finais felizes (...) acentua e marca uma atitude existencial de desesperança projetada nas suas personagens” (2008, 133). Atas do II Encontro Anual da AIM 442 Areal constata ainda que “em Manuel Guimarães quase não há alusão: há alegoria, metáfora, símbolo, formas retóricas de grande clareza e legibilidade; o que portanto o fez presa directa da censura” (idem, 144). Este choque constante com a censura parece ter desesperado profundamente o realizador e Paulo Cunha escreve: as esperanças depositadas em Guimarães rapidamente se esvaneceram, perdendo-se o entusiasmo inicial à volta deste jovem promissor. O próprio cineasta, devido às enormes dificuldades financeiras e às fortes mutilações impostas pela censura oficial, acabou por ceder ao mercado: ‘Senti-me perdido, desorientado, vencido, desmoralizado. Sofri uma enorme depressão, uma terrível angústia. Ninguém sonha hoje os sacrifícios e o heroísmo que eram necessários para se fazer um filme independente e sem apoios financeiros...’ (Cunha 2007, 88) Vai ser em 1964 que, por ideia de Cunha Telles, Manuel Guimarães vai ser chamado a dirigir O Crime de Aldeia Velha, adaptado da peça homónima de Bernardo Santareno e com diálogos escritos pelo próprio dramaturgo. O Crime da Aldeia Velha O filme foi realizado por Manuel Guimarães, com argumento de Bernardo Santareno e Guimarães, a partir da obra homónima de Santareno. A produção, de alguma ambição, foi de António da Cunha Telles e contou com atores portugueses conhecidos, como Glicínia Quartín, Rogério Paulo ou Miguel Franco, tendo sido protagonizado pela atriz francesa Barbara Laage, dobrada por Maria Barroso. O filme parece ter sido iniciativa de António da Cunha Telles que, perante a falta de sucesso comercial dos filmes que havia produzido previamente — Paulo Filipe Monteiro (2000) nota que apesar de serem filmes baratos, todos eles perderam dinheiro — procurou a adaptação literária de prestígio, apoiada pelo Fundo do Cinema e promovida por estrelas internacionais, como forma de tentar chegar a um público mais amplo. Jorge Palinhos 443 O enredo, tanto da peça como do filme, assenta num caso verídico, registado no Tribunal da Relação do Porto, de um episódio que se passou na aldeia de Soalhães, Marco de Canaveses, no ano de 1934. A história real é um caso de miséria e obscurantismo: uma mulher, Arminda de Jesus, teria sido queimada viva por familiares que lhe deviam dinheiro. Estes afirmavam estar convictos de que a mulher estava possuída pelo demónio, e que uma “mulher sábia” os havia aconselhado a queimarem-na como forma de purificação da vítima, sendo que esta deveria renascer depois de queimada, livre já da possessão demoníaca. O filme adapta a peça de Santareno, mantendo o enredo geral, mas ajustando-o às possibilidades e necessidades da narrativa fílmica. Neste enredo, Joana é a rapariga mais bela de Aldeia Velha, alvo do desejo dos homens e da inveja das outras mulheres. Mas Joana mantém-se intocável e despreza os seus pretendentes, levando dois deles a um combate de navalhas — de machados, no caso do filme — em que ambos morrem. Alguns incidentes, como a morte de um bebé que estava a seu cuidado, e a tentação que Joana parece constituir para o padre Júlio, levam toda a aldeia a suspeitar que Joana está possuída pelo demónio, algo em que a própria também parece acreditar, e esta deixa-se exorcizar num ritual de fogo no decurso do qual morre. No âmbito deste enredo e da construção fílmica da obra, deteto alguns elementos que me parecem reveladores de uma visão pessoal e artística sobre o Portugal de então, e sobre a repressão censória que então existia. Principio, desde logo, por apontar que, curiosamente, o filme começa por informar o espectador, através de uma legenda, que “Esta história decorre no século passado”. Esta é uma afirmação intrigante, pois o caso real ocorreu na primeira metade no século XX, a sua adaptação para teatro também se realizou no século XX, e a realidade que é mostrada no filme é uma realidade próxima de meados do mesmo século, como é manifesto nas roupas usadas. As explicações plausíveis para esta declaração estão longe de ser inocentes: ou se pretendia desviar a atenção da censura de que aquilo que se estava a retratar era uma aldeia portuguesa sob o Estado Novo como lugar de fanatismo e ignorância, ou então tratava-se de um comentário irónico, por parte dos autores, sobre uma Atas do II Encontro Anual da AIM 444 realidade presente, mas que cuja natureza retrógrada a fazia assemelhar-se mais a um tempo longínquo. A este aviso seguem-se vários planos de uma aldeia vazia e sombria, com um fundo sonoro de cães a ladrar, estabelecendo um ambiente de medo e desolação, de um território dominado pelas trevas e pelo segredo, sem qualquer presença humana reconfortante. Curiosamente, esta primeira cena de vazio da aldeia contrasta com grande parte das cenas posteriores do filme, em que vemos fundamentalmente cenas de multidão, da multidão a enfrentar o indivíduo rebelde, ou então do indivíduo isolado do mundo, traduzindo uma relação de forças dos poucos contra os muitos, segundo a lógica de uma sociedade repressora e totalitária. Esta imagética geral tem, aliás, uma sequência inicial extremamente forte, mostrando um conjunto de mulheres idosas, vestidas de negro, que manietam um homem jovem e o marcam com cruzes, ao mesmo tempo que entoam encantamentos. Esta imagem remete tanto para um ritual pagão como para uma forma de exorcismo do corpo do homem, um corpo como lugar de desejo pois, como somos informados, este homem está apaixonado por Joana, a protagonista. Neste âmbito, a cena, de um grupo de mulheres a dominarem um único homem, parece exprimir também impotência por parte deste perante o grupo ou mesmo castração, realizada aqui de forma simbólica, com a aplicação de cruzes em várias partes do corpo da personagem. Menciono a ideia de castração, pois esta parece-me ser um dos temas recorrentes no filme. No genérico inicial do mesmo assistimos a um corte de árvores, que irá repetir-se mais adiante. Esta é uma metáfora visual muito clara da ideia de anular a vida, o desejo, a natureza. Na sequência que ocorre dentro do enredo do filme, por alturas do minuto 29, vemos justamente dois dos pretendentes de Joana que se embrenham no ato frenético de cortar, cada um, uma árvore, no meio de outros homens da aldeia que fazem o mesmo. Esta é uma sequência de elevada expressividade, em que a montagem paralela de ambos os homens a cortar as árvores remete para uma imagética de castração do desejo, autopunição, receio da expressão exterior de sentimentos. Significativamente, a cena, que parece uma preparação para o confronto físico Jorge Palinhos 445 entre os dois homens, termina abruptamente, sem se concretizar essa violência, remetendo mais uma vez para a ideia de castração do desejo. Essa violência só se irá concretizar sensivelmente a meio do filme, por volta do minuto 52, em que, numa longa e complexa sequência, assistimos, por um lado, à chegada do novo padre, Júlio, à aldeia, no preciso momento em que os aldeões procedem à matança de um porco e se desencadeia a briga entre os dois pretendentes rejeitados por Joana. Esta sequência apresenta diversos pormenores muito curiosos. Um deles é a reação à violência física. Desse modo, o plano da matança do porco é seguido pelo plano de uma mulher da aldeia a sorrir, da mesma forma que o combate entre os dois pretendentes é acompanhado por um plano de Joana a sorrir, numa aparente lógica de comprazimento pela violência, talvez único escape para a castração do desejo que referi antes. A própria briga apresenta elementos significativos. Como arma da briga optou-se pelo machado, e não pela navalha, como seria realista na época e consta, aliás, na peça original de Santareno. Tal opção pode explicar-se por o machado constituir um elemento visual mais interessante do que a navalha, além de permitir alguns planos em que os dois machados se imobilizam na forma de uma cruz, numa imagem poderosa que funde cristianismo e violência, como se Guimarães procurasse relacionar simbolicamente ambos. Outra sequência relevante é o final do filme: o exorcismo de Joana, em que vemos toda a aldeia a conduzi-la para uma espécie de castro ou castelo, onde o fogo será ateado e Joana supliciada para se redimir. A sequência está encenada de uma forma altamente ritualística, mostrando todo o percurso até ao local como uma longa procissão de cariz religioso. Aqui, mais uma vez, voltamos a ver sorrisos de comprazimento pela violência em rostos femininos. Aliás, significativamente, durante o suplício de Joana, vemos planos do público a assistir que está disposto de forma ordeira, quase marcial, com as mulheres à frente, como se estas fossem as principais promotoras do ato de destruição do objeto desejado: Joana. Esta imagem recorrente no filme, da figura feminina como instigadora e usufruidora da violência, causa alguma perplexidade, e seria merecedora de uma Atas do II Encontro Anual da AIM 446 análise no âmbito dos estudos de género, mas não sendo esse o enfoque deste artigo, e assumindo que tanto Santareno como Guimarães se filiavam nas correntes sociais menos conservadoras da época, permito-me supor que estes planos pretendem fundamentalmente relacionar a ideia da mulher rural e oprimida com a de conservadorismo e ignorância, ou, talvez, a ideia de que aqueles que mais são vítimas da castração — como acontecia com as mulheres no Estado Novo, desprovidas de direitos políticos e sociais –– são também aqueles que mais desejam o escape da violência. Nesta retrato de repressão, refira-se um aspeto aparentemente contraditório: o de que as figuras de autoridade, como são o regedor e o padre — representantes por excelência do poder rural no Estado Novo — são caracterizados no filme como inocentes em relação ao crime cometido e tentando até, com pouca eficácia, na verdade, opor-se àquele. Aliás, a interpretação do padre Júlio, bastante criticada do ponto de vista cinematográfico, mostra-o frágil perante a brutalidade da aldeia para onde foi enviado. Esta é, sem dúvida, uma concessão à vigilância da Censura, que é necessária pois a força imagética do filme reflete, como vimos, uma denúncia de um território tomado pelo medo, pela violência e pela repressão do desejo. Esta repressão é abertamente sexual, mas implicitamente pode ser interpretada como política e artística. Aliás, a ideia da castração já tinha sido reconhecida na obra de Santareno. Por Jorge de Sena (1989), por exemplo, e também por Graça dos Santos, que afirma: É assim que o teatro português é reduzido a uma arte menor, ‘um teatro castrado’. É antes do mais um teatro obrigado a fugir à realidade, na medida em que a censura não autoriza nada que ponha em causa o sistema. (...) Santareno teve poucas das suas peças representadas. O teatro que não estivesse em conformidade com as regras estabelecidas será classificado no género ‘literatura dramática’ e nunca chegará a ser espectáculo. (Santos 2004, 283) Jorge Palinhos 447 Conclusão Para Luiz Francisco Rebello (s.d., 256) “O problema da frustração carnal (...) irá dominar todo o teatro ulterior de Santareno (...) de que será exemplo a histeria de Joana, a supliciada de O Crime de Aldeia Velha”. Se essa frustração é relativamente evidente, é também evidente que o filme retrata Joana como rejeitando os princípios que a sua sociedade lhe tenta impor, mas que essa rejeição vai ter um preço: a perda da própria vida. O filme, recorrendo a técnicas maioritariamente expressionistas, como o uso dos contrastes de luz, ambientes fantasmáticos ou metáforas visuais excessivas, mostra também que a violência é o fruto de uma sociedade de repressão, em que são as principais vítimas dessa repressão que se tornam as principais executoras de violência, como é o caso da representação das mulheres mais velhas da aldeia, que são representadas como conservadoras da tradição, do obscurantismo, e também promotoras da violência com que se anulam os elementos que tentam escapar ao seu controlo. Através de várias metáforas visuais, o filme vai relacionar a religião com a violência, apesar de essa relação ser relativamente matizada em termos de diálogo, com a figura do padre a expressar-se contra a violência, mas a ser incapaz de a combater ou canalizar. Por estes elementos, parece-me indisfarçável que o filme traduz uma visão profundamente negativa do Portugal do Estado Novo, composto por dois autores que viram as respetivas obras “castradas” por aquele, e que traduzem essa noção de castração no interior do código visual e narrativo do próprio filme. O filme, em termos práticos, acabou por não cumprir os objetivos comerciais a que se havia proposto, e hoje é ainda pouco estudado pelos investigadores, mas não deixa de constituir um testemunho relevante da forma como dois criadores singulares expuseram os limites do ato da criação sob o Estado Novo e a respetiva censura. Atas do II Encontro Anual da AIM 448 BIBLIOGRAFIA s.a. s.d. “Processos Históricos dos Tribunais do Distrito Judicial do Porto.” http://www.trp.pt/historia/87-processoshistoricos.html. Acedido em 10 de fevereiro de 2012. AAVV. 1996. O Cinema vai ao teatro. Lisboa: Cinemateca Portuguesa—Museu do Cinema e Museu Nacional do Teatro. 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