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QUEM SOMOS







O Casa Amarela 5B -Jornal Online surge da vontade de vários artistas, de, num esforço conjunto, trabalharem no sentido de criar uma relação forte com o público e levando a sua actividade ao seu conhecimento através do seu jornal online.

Este grupo de artistas achou por bem dedicar o seu trabalho pintorNelsonDias, https://www.facebook.com/pages/Nelson-Dias/79280420846?ref=hl cuja obra terá sido muito pouco divulgada em Portugal, apesar de reconhecido mérito na banda desenhada, a nível nacional e internacional e de várias vezes premiado em bienais de desenho e pintura.


Direcção e coordenação: Maria João Franco.
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Friday, August 29, 2008

Futebol::outros olhares...

Futebol: o bobo do festim?
O futebol é um jogo magnífico. E jovem. Só que o seu maior problema hoje não está no entanto nos perdedores, mas sim nos predadores. As hienas e os chacais, por todo o lado à sua volta, devoram-no. Procuraremos ver mais à frente porquê e como.
Muitas são as modalidades desportivas, como é sabido, umas com mais história que outras. O atletismo e o boxe vêm de longa data, atravessaram desde a Antiguidade toda a Idade Média e a Renascença, até aos nossos dias. O boxe já estava presente nos Jogos Olímpicos da Grécia em 689 a. C., enquanto que o futebol, tal como o conhecemos, é uma criação inglesa do séc. XIX, mais exactamente de 1848. Ele inclui-se nos jogos de equipa da modernidade industrial, tal como o rugby, o handeball, o basketball e o hockey. Embora não seja um desporto de combate, para lá caminha!
0 primeiro Mundial de futebol teve lugar em Montevideu, em que o Uruguai bateu a Argentina. Seguiram-se os de 1934 e de 1938. Um desporto que se tornou nas últimas décadas a expressão mais acabada da “Sociedade do espectáculo”, para utilizar o título consagrado de Guy Debord. Empolado pela comunicação televisiva, ele é hoje, em directo, o maior espectáculo de massas do planeta. Bem antes dos jogos, logo se começam a explorar obsessivamente as emoções e as expectativas em sequências fílmicas inacreditáveis, no pormenor, no limite do anedótico, tal como foram apresentadas nos canais portugueses em Junho último, em Lisboa, no Europeu 2008, quando da recepção da Selecção em Belém pelo presidente da República, antes da partida para a Suiça: o percurso dos jogadores de autocarro, o aparato policial, a cobertura jornalística a martelar passo a passo as etapas e, já em Belém, a fotografia de família com Scolari e toda a equipa, o Presidente a cumprimentar um por um todos os jogadores e demais elementos. No exterior, muitos populares, as crianças também presentes, que é de pequenino que se torce o pepino. Mais tarde, é o filme da chegada a Neuchâtel, onde um perseverante contingente de emigrantes portugueses já esperava a comitiva e é de novo que assistimos ao Portugal das bandeirinhas. É digno de nota o apego desses imigrantes que foram forçados a abandonar a terra, uma derrota mais que a Pátria lhes infligiu e impôs embora posteriormente, com sacrifício, tenham acabado por daí tirar alguns dividendos, e não só financeiros. As pulsões primitivas em torno do futebol são efectivamente contrárias à reflexão desapaixonada e ao distanciamento. Daí, ser este desporto terreno de eleição de nacionalismos estreitos e exacerbados, o que a linguagem dos adeptos só confirma, do tipo: “Scolari amigo, nós, os verdadeiros patriotas, estamos contigo/ Ele (Scolari) fez despertar em nós o orgulho de ser portugueses/Vamos vencer e erguer a bandeira de Portugal”. Por outras palavras, esse orgulho só se desperta com futebol! Parece aliás que pouco mais que isso temos para exportar. Para além da identificação da Pátria a Scolari, essa linguagem significa ainda que quem não é por ele também não está com ela. Ora, isto não é apenas redutor, é fascizante. Quanto à bandeira bem erguida, basta olhar os maus tratos que tem recebido, alpendorada onde menos se esperava, nos estendais de roupa das varandas, misturada com ceroulas e fronhas, perdido o estatuto que é o seu, sem que a República e a Presidência pestanejem porque vergadas aos dividendos políticos do populismo patrioteiro.
Mas não data de hoje a propaganda e o aproveitamento político do futebol. Um prato de que todas as ditaduras se serviram, tanto a Oeste como a Leste, condimentado à maneira com as receitas da casa. Valerá a pena voltar um pouco atrás, quando em 1962 o Benfica venceu em Amesterdão a final da Liga de Campeões por 5-3 contra o Real Madrid, na presença de 65.ooo espectadores. E foi o primeiro confronto europeu da história das duas equipas. Do lado de cá, José Augusto, Eusébio (que marcou 2 golos), Águas, Coluna (o moçambicano do médio campo) e Simões, entre outros. No Real Madrid, Di Stefano, Puskas, Gento e Santamaria nomeadamente”. Um Benfica que aí ficou bi –campeão, pela mão de Béla Guttman, o treinador magiar da escola austro- húngara. Salazar, ao receber a equipa de regresso, cumprimenta Eusébio, que passa a fazer parte do património nacional e que, como tal, não se exporta, portanto não sai do país. Coube a Américo Tomás fazer o elogio da proeza desses jogadores benfiquistas. Um elogio nada gratuito. A razão primeira é que na Selecção se irmanavam Portugal e África, Metrópole e “possessões” ultramarinas, depois chamadas “províncias”. De notar aqui o eufemismo, havendo sempre que interrogar a linguagem e as terminologias. O termo, demasiado carregado, foi substituído, embora se tratasse efectivamente de possessões. Não era a Guiné dessa época como que uma propriedade da Companhia União Fabril (CUF)? Noutros contextos, também o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) passara a chamar-se, depois de 1944, Secretariado Nacional da Informaçao (SNI). Mas voltemos ao jogo contra o Real Madrid. O que importa frisar em termos de propaganda multiracial é que na equipa portuguesa figuravam negros e brancos, o que foi uma novidade no contexto europeu, muito embora Otto Glória já nos anos 50 se socorresse do futebol africano e sem esquecer que Costa Pereira e Hilário eram, também eles, moçambicanos. O “Vasco da Gama” foi o primeiro a contratar negros e mulatos, mas isso era no Brasil (Cf. Campeonato Carioca de 1923). Nicolino, Arlindo, Nelson e Torterolli foram, entre outros, os primeiros negros da história a conquistarem o título. Por outro lado, o “Vasco da Gama” era o mais português dos clubes brasileiros. Noutras latitudes, quanto aos jogadores africanos das equipas inglesas desse período, eles eram brancos. No caso português, a vitória de Coluna e de Eusébio no referido jogo histórico contra o Real Madrid foi pois aproveitada para enaltecer a imagem da Nação portuguesa de aquém e além – mar, à revelia das taras do salazarismo. E tudo correu como previsto, “portaram-se bem”, contrariamente à atitude independente dos negros americanos Tommie Smith e John Carlos quando alguns anos mais tarde, em 1968, nas Olimpíadas do México, depois de receberam as medalhas no pódio, levantaram o braço com mão coberta por luva negra e punho cerrado, a saudação “black power”, em sinal de protesto contra a segregação. Eusébio nem sequer sabia exactamente o que lhe estava a acontecer quando lhe vestiram a pele de herói “nacional”. A rentabilização dessa vitória da Selecção contra a Espanha não se ficou por aqui: os jogadores partiram depois em digressão pelas colónias onde foram recebidos em apoteose! A perversidade era tanto maior quanto a homenagem a Eusébio não foi feita enquanto moçambicano mas como português. Que isso fosse do seu agrado ou não, não interessa agora. O que importa salientar é que a africanidade do jogador só tinha sentido no seio da Nação e do Império. Já dizia o jogador húngaro José Nazazi, duas vezes campeão do mundo, que a equipa nacional era a própria Pátria. Isto leva-me a pensar nas palavras de Albert Memmi quando referia em 1957 que “é o colonialismo que cria o patriotismo dos colonizados”. Quanto a Eusébio, a sua imagem só era aproveitável através do branqueamento da lusitanidade, sendo o desporto aqui manipulado pelo Estado para manter a coesão nacional dentro do império. As vitórias do Benfica em muito serviram para doirar uma imagem e legitimar um governo que tudo fez para o conseguir - mesmo tendo obviamente consciência de estar na pele do usurpador - não hesitando em falsificar a história, inverter as ópticas e valorizar os seus próprios méritos, fazendo de Eusébio uma criação portuguesa, tal como o fez com outros. Dito por outras palavras, se o jogador tivesse ficado por África nunca seria o Eusébio. É assim que o colonialista reflecte: tirar partido do outro para enaltecer os méritos próprios. O sucesso desportivo de 1962 caiu como uma dádiva inesperada, dado que no contexto de turbulência politica dos anos 60, o regime afrontava dificuldades. As fragilidades do sistema começavam seriamente a desenhar-se. Os tempos eram outros. A manobra de diversão consistiu em desviar para a Final da Liga a atenção dos problemas reais, internamente como à escala internacional.
O futebol não é o fado, são radicalmente outras as valências da modalidade desportiva, mas Amália Rodrigues, no registo que era o seu, também foi um símbolo nacional e, como tal, não deixou também de ser uma embaixadora da canção aproveitada pelo salazarismo. Não terá sido apenas pela sua voz e perfil fadista que acabou por ter lugar no panteão nacional. Em contrapartida, a memória do grande romancista Aquilino Ribeiro foi alvo de injustificada polémica, quando da trasladação das suas ossadas em 2007 para esse mesmo panteão, ou seja, para a igreja de Santa Engrácia.
E quais eram as fragilidades do império nesse início dos anos 60? Aproveitarei para fazer uma digressão de modo a enquadrar, no contexto da época, alguns dos sintomas dessas fragilidades: De Gaulle, em França, falhada a solução militar na Argélia (“Départements d’Algérie) acabava de negociar os “Acordos de Evian” (Março 1962) que puseram fim a 7 anos de guerra e que levaram à independência alguns meses mais tarde. Feridas que ainda não estão de todo cicatrizadas. Ora, foi no preciso momento em que os Franceses saíram de campo, que Portugal inicia a sua última guerra colonial, e isto muito depois de os dados da mudança já terem sido lançados e o aviso já ter sido dado bem antes, na Conferência de Bandoung, na Indonésia, em 1955. Apesar de o xadrez político dos participantes a esta conferência ser algo heteróclito e apesar das realidades futuras terem ficado muito aquém das expectativas que as resoluções finais indiciavam, foi em Bandoung que pela primeira vez se reuniram 29 países da África e da Ásia sem a presença das grandes potências. Europa, União Soviética e Estados Unidos ficaram de fora. Uma viragem, um novo modelo nas relações internacionais, um novo espírito. E ficou afirmado nessas resoluções o combate a todas as formas de colonialismo e considerada a submissão ao jugo estrangeiro uma violação dos direitos fundamentais contrária à Carta das Nações Unidas e um obstáculo a paz mundial. Estava lançado o repto. No ano seguinte, em 1956, assiste-se à invasão dos tanques soviéticos em Budapeste e ao alinhamento dos partidos comunistas ortodoxos com Moscovo, com as consequências que daí resultaram e que não cabe agora aqui equacionar. Muitos intelectuais logo tiraram as suas ilações. Foi o caso de Sartre, que publica em 1957 o ”O colonialismo é um sistema”, texto fundador, em que o colonizado - e não apenas o proletariado - surge como o novo protagonista da História e em que se afirma sem ambiguidades que a revolta é a única saída. Temas estes, cujos envolvimentos à escala internacional mereceriam todo um capítulo. Desse mesmo ano data um outro texto notável (1957), “O retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador”, do tunisino Albert Memmi atrás referido. Um ano depois, em 1958, a Guiné -Conacry diz não a De Gaulle e torna - se independente. Em 1960 surge o “Manifesto dos 121” signatários, encabeçado por Sartre, no qual se promove o apoio à resistência contra a guerra da Argélia, se justifica a recusa de pegar em armas, pela causa de todos os homens livres e se abre caminho à deserção das fileiras. Um texto - manifesto importantíssimo porque dessacralizou a obediência às Forças Armadas e impunha a revolta, quando essas forças violavam sistematicamente os direitos fundamentais. Uma postura que era um direito, mas também um dever, mesmo que à margem dos aparelhos políticos oficiais, nomeadamente do PC francês e da Argélia francesa. Que se releiam os textos de Sartre activista político e as suas considerações sobre a gangrena da tortura imposta aos combatentes argelinos do FLN. De 1960 datam também um grande número de independências africanas, nomeadamente: Dahomey (Bénin), Costa do Marfim, Alto Volta (Burkina Faso), Mauritânia, Níger, Senegal, Congo, Gabão, Tchad, Togo, Camarões, Madagáscar, e a lista não está completa. Depois da retumbante derrota militar francesa de Dien Bien Phu de 1954 na Indochina, as soluções políticas, em 1960, eram a única alternativa. É o fim da ”Comunidade francesa”, a queda do Império e o aparecimento de uma nova cartografia politica, embora o neo - colonialismo tivesse conseguido manter muitos dos seus interesses geo-estratégicos e económicos. Em 1961, Sartre prefacia os “Damnés de la Terre” de Franz Fanon. E em 1962 é a independência da Argélia.
Ora, Salazar tudo isso ignorou, orgulhosamente só, tendo de imediato optado pela solução militar, levada a cabo por um pais bem menos poderoso que a França. E não era só internacionalmente que as coisas não corriam de feição para o salazarismo no início da década de 60. Também no plano interno se abriam brechas. Em 1961, Palma Inácio regressa a Lisboa desviando um avião da TAP e tem lugar o assalto ao paquete “Santa Maria” numa operação de comando, muito mediatizada, chefiada por Henrique Galvão. Ora, Galvão (1895- 1970) não era um personagem qualquer: foi inspector superior do Ministério das Colónias onde colaborou com Marcelo Caetano. Após ter servido o regime (tal como o serviram até certo momento, embora noutros moldes, e ressalvadas as diferenças, os oficiais de carreira Humberto Delgado e Salgueiro Maia, entre tantos) passou a contestá-lo a partir de 1947, ano em que apresenta à Assembleia Nacional um aviso prévio sobre o trabalho forçado nas colónias. Preso, acaba por evadir-se em 1959 do Hospital de Santa Maria e, já exilado no Brasil, lança a obra colectiva “Colonialismo, Anticolonialismo e Autodeterminação”. Nesse mesmo ano de 1961, militantes nacionalistas angolanos, após a criação do MPLA em 1960 (Em 1956 são apenas os prolegómenos ) investem a prisão militar de Luanda. Sem esquecer a rebelião- chacina da UPA de Holden Roberto no Norte de Angola. Ainda em 1961,Goa, Damão e Diu foram ocupadas pelas tropas da União Indiana. E dá-se o golpe de Beja, que fracassou. Em 1962 são as “crises” académicas. Ora, é justamente em 1962 que a Selecção ganha em Amesterdão, o que caiu como a sopa no mel.
Salazar não foi no entanto um caso isolado em termos de aproveitamento politico do futebol. É uma história antiga. Antes dele, fizeram-no o fascismo italiano, o nazismo do III Reich e o franquismo espanhol. O aproveitamento a Leste daria também todo um capítulo.
Para Mussolini, que instala a ditadura em 1925, também um título ajudaria muito a validar o regime. A ocasião surgiu em 1934 quando da vitória da Itália, em casa, no Mundial. Era o próprio Duce a designar os árbitros. E voltou a recuperar o futebol para os seus desígnios quando a Selecção italiana conquistou a Taça seguinte, em 1938
Com um leque desportivo mais alargado, os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 foram presididos e também aproveitados por Hitler. Muita tirania tem sido camuflada sob a égide do desporto. Durante esse evento de 36 foram logo retirados os cartazes anti - semitas. Só provisoriamente. E quem se apercebeu que pouco antes do início dos Jogos, cerca de 800 membros da comunidade cigana de Berlim foram presos e internados num campo especial em Narzahn ?
Do lado espanhol, bem mais tarde, convém assinalar que Franco não permitiu que a Espanha defrontasse a União Soviética no Europeu de 1960, retirando assim o país da competição. É sabido também que o generalíssimo fez do Real Madrid (o clube branco), a sua bandeira e que Di Stefano, praticamente contratado pelo Barcelona, foi compulsivamente encaminhado para o Real Madrid. Mas o Barcelona, trincheira de republicanos e democratas, não se esquece e, um mês após a morte de Franco, a vitória sobre o Real Madrid foi festejada como uma libertação.
Mais perto de nós, as vitórias das Selecções brasileira e argentina, respectivamente nas Taças do Mundo de 1970 e 1978, foram elas também recuperadas pelo sinistro Videla e pelos não menos sinistros militares brasileiros.
Já bem mais perto dos nossos dias, em 2005, duas equipas defrontaram-se no estádio olímpico de Roma. Dum lado, o “Lazio”, do outro o “Livorno”. O primeiro arvorando bandeiras negras, efígies de Mussolini e símbolos nazis (suásticas e cruzes célticas) condimentados com slogans e palavras de ordem do tipo “Itália é nossa”,“Livornense Verme Vermelho” e outros mimos, para além dos coros fascistas. Do outro lado bandeiras vermelhas com foice e martelo, imagens de Che Guevara, enquanto as claques cantavam a “Bandiera rossa”. Cristiano Lucarelli também do “Livorno”, costumava aliás comemorar os golos marcados de braço esquerdo erguido e punho cerrado. Noutra ocasião, pelo “Lazio”, Paolo Di Canio celebrou a vitória contra o “Roma” com a saudação fascista, braço direito estendido para a frente e mão esticada. Ora, seja qual for a cor, o afrontamento em estádios erra sempre o alvo político, é um produto tóxico. É preciso não esquecer que os estádios são hoje, à partida, espaços militarizados, instrumentalizados e minados por outros interesses, o que não deixará de implementar a fascização do desporto e do tecido social no seu todo, e que o hooliganismo, por outro lado, é a negação da política.
Vejamos alguns aspectos desses outros interesses, aquém e além do desporto propriamente dito: no cenário: numa Taça do Mundo, a FIFA pode receber sem dificuldade mais de 1 bilhão de euros só pelos direitos televisivos e pelos patrocínios. E mais de 3 bilhões estarão facilmente associados a uma competição desta amplitude só em investimentos publicitários, o que naturalmente desperta o apetite dos faunos. As instituições desportivas estão controladas por grupos de pressão económicos e poderosas sociedades de management desportivo. Assiste-se à galopante mercantilização dos clubes, alguns cotados em bolsa, mas também dos jogadores, com práticas mafiosas nas suas transferências, facilitadas com a globalização (legislação Bosman de 1995 que liberalizou a circulação dos jogadores). Mercantilização até das mulheres (o caso do tráfico de prostitutas). É este o contexto em que entronca a chamada “crise do futebol”, tal como se poderia falar mutatis mutandis em crise na Saúde ou na Educação. Jogos viciados em Itália, apitos dourados em Portugal, são apenas algumas das manifestações mais visíveis, a ponta do iceberg. Ao deboche mercantil junta-se o mediático e o político. A corrupção na arbitragem é espelho da corrupção da própria Justiça. Neste contexto vampírico do capital financeiro em torno do futebol, não será de espantar assistirmos à militarização das performances e dos resultados, treinos intensivos, exigência de rendimento máximo das equipas, competitividade e eficácia comprada a qualquer preço, corrida ao recorde, timings, medicalização abusiba, dopagem cientificamente assistida, caça precoce de talentos. Uma fábrica de robots, de alienados no corpo e no espírito. Daí à experimentação científica vai um passo. Um futebol cada vez mais distante de uma prática desportiva sadia, que era o seu primitivo estatuto. Saúde no desporto? Que ironia! É certo que os jogadores ganham somas desproporcionadas, mas não esquecer no entanto que a sua esperança de vida profissional é curta. Menos aleatória que a dos toureiros, no entanto. Todo este contexto de submissão do futebol ao capital financeiro retira-lhe, por outro lado, qualquer veleidade de união entre os povos, como se pretende e insinua. O futebol é hoje uma mercadoria transaccionada à escala planetária. Sem pretender fazer essa Sociologia, o engodo dos estádios corre em paralelo com o descrédito nas religiões oficiais, acabando por ocupar estes espaços cada vez mais esvaziados de conteúdo. E com o descrédito na política que, naturalmente, não quer faltar à chamada. “Noblesse oblige”. Nesta final do Europeu 2008 entre a Alemanha e a Espanha, lá estavam na bancada de honra governo e famílias reais de um lado, a chanceler alemã Ângela Merkel, do outro. Quer se goste ou não de futebol, não podiam perder o comboio das massas populares.
A corrida à produtividade nos estádios é indissociável da competitividade global. Daí que o futebol se assemelhe ao teatro da guerra, no relvado como fora dele: pontapés fulminantes dos jogadores, nem sempre na bola, as batalhas campais entre claques e adeptos, dentro e fora dos estádios. Sem falar na guerra de bastidores. Seria fastidioso explicitá-lo no pormenor. Uma linguagem também guerreira, arrogante, neo- liberal, que Scolari representa bem. O “mata - mata” dos jogos decisivos é uma das expressões do “sargentão”, o treinador- pugilista, tal como ficou confirmado quando esmurrou em campo o defesa sérvio Draguitinovic, no final da última partida do Portugal – Sérvia, após a frustração do empate 1-1, à beira dos 90 minutos. O seu pendor arruaceiro e boçal manifestou-se ainda quando chamou filhos da puta a alguns jornalistas. Guerra é guerra. Onde está o “fair play”? Em seu lugar, violências assassinas, quarteirões em estado de sítio. Perante isto, grupos de extrema direita ficam naturalmente com as costas bem mais quentes. É pois pura ilusão neste cenário pretender moralizar a empresa desportiva ou tentar aproximá-la da cidadania. Paralelamente, a corrupção generaliza-se. Que autoridade haverá quando se compram árbitros e treinadores, se falsificam facturas, se encaixam gordas quantias debaixo da mesa, se há mais arguidos reais ou potenciais em torno do futebol do que jogadores? Grandes são as responsabilidades do E$tado.
Adeus cultura da amizade. Como acreditar na horizontalização dos relacionamentos que o futebol veicularia, defendida por alguns teóricos? Convivência multirracial? Daria para rir se não fosse trágico. O adversário virou inimigo a abater, dentro e fora de campo. É a cultura do ódio de que o Ajax (considerado a equipa da comunidade judia de Amesterdão) e o Feyenoord de Roterdão, na Holanda, são bom exemplo. Daí que as novas normas contra o hooliganismo a serem aprovadas pelo Parlamento holandês sejam inspiradas da legislação antiterrorista! Em suma, deste ponto de vista o futebol é um agente de dessocialização e de egoismos tribais, não raramente associados ao alcoolismo das claques. O Estado não tem mais o monopólio da violência. Tal como o terrorismo internacional, ele está fora de controlo. Curiosamente essa violência nos estádios é em larga medida solicitada e alimentada pelo imperialismo televisivo, ao redimensionar exponencialmente o espectáculo virtual, na corrida às audiências e na manipulação totalitária dos afectos e da emoção, como procurei pôr em evidência mais acima nestas curtas linhas. Aprendizes de feiticeiro que desencadearam forças que não controlam mais. Que belo presente que entregam às novas gerações.
Concluiria que
Não é futebol como desporto em si que está em causa. A modalidade é magnífica. O que o rodeia e o que dele fizeram transformaram-no no entanto num desastre ecológico. Espectáculo de multidões, o mais universal dos desportos. Na final da Taça do Mundo em Julho de 2006, estariam frente ao ecrã televisivo qualquer coisa como um terço da humanidade, representando mais de 200 países, gente que nesse momento não estaria a pensar em mais nada a não ser na bola, o que dá muito jeito a tantos governantes, para além dos interesses negociais. Todos os ingredientes se reuniram para transformar o mais popular dos desportos em teatro catalizador de violências: clãs, claques adeptos, novos rituais e liturgias, cantos, símbolos, brasões, emblemas e camisolas. Não é o totemismo da África profunda mas sim o da modernidade. Sacralização de jogadores (Di Stefano, Pelé, Eusébio, Maradona, Ronaldo e Ronaldo etc.) Um desporto de novos cruzados, heróis duma guerra santa entre equipas inimigas. Decididamente, o sagrado deslocou-se, destronados os antigos deuses, abandonados pelas civilizações. Nos destinos colectivos e nas performances dos ídolos e dos clubes são projectados os destinos individuais de milhões de pessoas. Amar a sua equipa não deixa de ter porém algo de sado - masoquista, pois que num Mundial são sempre mais os que perdem que os que ganham. Os estádios são hoje as catedrais da modernidade, com os seus Papas ( FIFA, UEFA e aparentados ) e com uma vocação apostólica aliás bem mais ecuménica e abrangente, pois que aí não se discute se a pertença confessional é islâmica, hindu, budista, católica, luterana ou calvinista. Haverá excepções, na Irlanda nomeadamente. O que prima no entanto é a fidelidade ao grupo, a pertença ao clube, apesar das clivagens de classe iniciais, nos primórdios do futebol, entre operariado, lordes ou burgueses, futebol amador ou futebol profissional. Canalizam-se para os clubes frustrações partilhadas: You will never walk alone (Nunca andarás sozinho) é slogan do Liverpool e das suas tradições operárias.
Nalguns casos, os próprios locais de culto se futebolizam. Salas de congregação e outras dependências de igrejas luteranas alemãs serviram em 2006 para assistir à exibição das partidas da Taça. Por cá, Scolari alimentou rezas dentro dos balneários antes do início dos jogos. Não ousará certamente fazê-lo agora, no Chelsea. Isso dava para Portugal, não cola no mundo anglicano.
O espectáculo da antiga tragédia grega era benfazejo (Cf. Aristóteles). Ele canalizava para o palco as agressividades, angústias e pulsões mortíferas dos espectadores. Digamos que essa era uma catarse positiva. (catharsis = purificação, sendo os cátaros os “puros”, dizimados pela Inquisição no séc. XIII). No futebol a vertente catártica conduz, em contrapartida, à cultura do ódio atrás referida, à amplificação das paixões e aos fanatismos patrióticos.

António Branquinho Pequeno (ULHT
)

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