"Tal como os países e as rotas marítimas, os artistas também têm descobridores. O de Malangatana foi o arquitecto Pancho Guedes.No final da década de 50, quando o jovem moçambicano era um mero empregado de mesa do Grémio Civil, em Maputo, o português disponibilizou-lhe um espaço na garagem para pintar à noite. E não ficou por aqui. Todos os meses lhe comprava dois quadros a preços inflaccionados. Pouco depois, o rapaz decidiu apresentar o trabalho ao público. Foi um sucesso."De um ano para o outro [o Malangatana] passou de simples empregado de bar e limpezas num clube de elite moçambicano para um pintor de grande reputação", recordou ontem Pancho Guedes, surpreendido pela morte do antigo protegido. "Fazia uma pintura que era só dele, não precisando que ninguém lha ensinasse ou interpretasse."Pastor, curandeiro e mainato Malangatana Valente Ngwenya nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, perto da então Lourenço Marques, hoje Maputo. Até adoecer, a mãe bordava cabaças e afiava os dentes das raparigas, como se usava na altura. O pai era mineiro na África do Sul. O miúdo acabou por ir viver com um tio paterno. Estudou até ao segundo ano na Escola da Missão Suíça na Matalana, que adorava. "Podíamos aprender várias técnicas criativas como olaria, cestaria e trabalhar a madeira para além de ler e escrever", contou em 1989 à revista "New Internationalist". Quando a instituição fechou, passou para a Escola da Missão Católica em Bulázi. Mas por pouco tempo. Aos 11 anos, concluído o terceiro ano e considerado já adulto, Malangatana começou a trabalhar. Foi pastor, aprendiz de curandeiro (ensinado pela tia), mainato (empregados que lavavam e engomavam a roupa) e tomou conta de crianças, até chegar de forma providencial ao clube de ténis."O apanha-bolas era um tal de Malangatana Ngwenya, que no fim de uma tarde de desporto se acercou de mim para me pedir se por acaso não teria em casa um par de sapatilhas velhas que lhe emprestasse", contou em 1989 o artista plástico e biólogo Augusto Cabral. Nessa noite, o rapaz foi a casa dele e viu-o pintar. Pediu-lhe que lhe ensinasse. Recebeu em resposta tintas, pincéis e placas de contraplacado: "[Pinta] o que está dentro da tua cabeça."Depois veio a garagem de Pancho Guedes, a exposição colectiva de 1959 e o sucesso - que espantou Augusto Cabral - até se tornar no embondeiro da arte moçambicana. Malangatana pintava o povo de Moçambique, a opressão colonial, a resistência e a guerra civil. Cenas quotidianas, imbuídas de dor e revolta. "Quando conheço pessoas, rio, canto, danço. Quando me dirijo à tela sou outro Malangatana", explicou à "New Internationalist". Chegou a ser preso pela PIDE, acusado de pertencer ao movimento de libertação FRELIMO. Muitos anos depois, de 1990 a 1994, seria deputado pelo partido.A rir até ao fim A morte de Malangatana apanhou muitos admiradores de surpresa. Em Outubro, na inauguração da exposição de desenhos e pinturas ainda patente na Casa da Cerca, em Almada, "contou histórias, riu, brincou com amigos", lembra a directora do espaço Ana Isabel Ribeiro. Era famosa a boa-disposição do Moçambicano, que muitas vezes cantava de improviso em palestras e reuniões de amigos.Malangatana foi internado no dia de Natal no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde a filha é médica. Morreu ontem às 3h30, vítima de cancro, com 74 anos. O corpo vai ser agora trasladado para Maputo, onde o aguardam cerimónias oficiais."
- agradecemos a imagem a Augusto Mota
Malangatana: a biografia
O mestre da arte moçambicana nasceu no dia 6 de Junho de 1936 na vila moçambicana de Matalana, uma povoação do distrito de Marracuene. A sua infância foi passada a ajudar a mãe em casa, ao mesmo tempo que frequentava a Escola de Missão Suiça protestante, local onde aprendeu a ler e a escrever. Acabou a sua instrução primária na Escola da Missão Católica em 1948.
O nascer de um artista
Quando tinha 12 anos, Malangatana Valente Ngwenya mudou-se para a antiga Lourenço Marques (actual Maputo) à procura de trabalho. Entre as várias actividades de que se ocupou foi pastor de gado, aprendiz de nyamussoro (médico tradicional), criado de meninos e em 1953, Malangatana tornou-se apanhador de bolas e criado no clube da elite colonial de Lourenço Marques. Este trabalho permitiu ao artista voltar a estudar em regime nocturno, facto que o levou ao gosto pelas artes especialmente devido à influência de Garizo do Carmo, seu mestre. Um dos membros do clube de ténis, Augusto Cabral, ofereceu-lhe o material de pintura.
No ano de 1958, Malangatana ingressa no Núcleo de Arte, uma organização artística local, com o apoio do pintor Zé Júlio. Um ano mais tarde, o moçambicano integra pela primeira vez uma exposição colectiva na Casa da Metrópole em Lourenço Marques passando desta forma a artista profissional devido em grande parte ao incentivo do arquitecto Miranda Guedes (Pancho), já que o português disponibiliza a sua garagem para ateliê e compra-lhe dois quadros por mês para que o artista se consiga manter.
A militância política
Ê a frequência do Núcleo de Arte que vai inserir Malangatana no círcuito artistico moçambicano e é aqui que começa a mostrar o seu trabalho, que tem um forte cunho social. Em 1961, aos 25 anos, fez a sua primeira exposição individual, no Banco Nacional Ultramarino. Em 1963, publicou alguns dos seus poemas no jornal “Orfeu Negro” e foi incluído na “Antologia da Poesia Moderna Africana”.
É durante estes tempos que Malangatana é apontado como membro da FRELIMO e é preso pela PIDE na cadeia da Machava juntamente com José Craveirinha e Rui Nogar. Na prática, o seu envolvimento não foi confirmado e no dia 23 de Março de 1966, Malangatana foi absolvido.
Todavia, os quadros de Malangatana carregavam simbologia e embora não fossem explícitos, denunciavam conteúdo político. Tanto que a 4 de Janeiro de 1971, foi detido com o objectivo de esclarecer o simbolismo do quadro "25 de Setembro" que tinha exposto recentemente no Núcleo de Arte, pondo em risco a sua partida para Portugal, onde tinha obtido uma bolsa da Fundação Gulbenkian para estudar gravura e cerâmica.
Durante os tempos que passa em Portugal trabalha em gravura, na Sociedade Cooperativa dos Gravadores Portugueses e, em cerâmica, na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego. No mesmo ano, expõe na Livraria Bucholz e na Sociedade Nacional de Belas Artes.Em 1973, vai para a Suíça a convite de amigos, onde tem contactos com diferentes galerias e artistas que lhe abrem novos horizontes.Com a independência de Moçambique, Malangatana envolve-se directamente na actividade política, participando em acções de mobilização e alfabetização, sendo enviado para Nampula com o objectivo de organizar as aldeias comunais.
Após a independência de Moçambique, Malangatana foi eleito deputado em 1990, pela FRELIMO, e em 1998 foi eleito para a Assembleia Municipal de Maputo e reeleito em 2003, participou em acções de alfabetização e na organização das aldeias comunais na Província de Nampula. Foi um dos fundadores do “Movimento Moçambicano para a Paz” e fez parte dos “Artistas do Mundo contra o Apartheid”, além de ter pertencido à Direcção da Liga de Escuteiros de Moçambique.
Um homem não só ligado à arte, mas à cultura
Tal como os seus mestres, Malangatana contribuiu para o desenvolvimento da cultura moçambicana, daí a participação na criação do Museu Nacional de Arte e a dinamização do Núcleo de Arte, da qual o próprio fez parte. O artista foi membro do Júri do Primeiro Prémio UNESCO para a Promoção das artes e com essa função desempenhou várias funções: membro permanente do Júri " Heritage", do Zimbabwe; membro do Júri da II Bienal de Havana; da Exposição Internacional de Arte Infantil de Moscovo; de vários eventos plásticos em Moçambique e Vice-Comissário Nacional par a área da Cultura de Moçambique para a Expo 98.
Sempre ligado à criança, colaborou com a UNICEF e durante alguns anos fez funcionar a escolinha dominical "Vamos Brincar", uma escolinha de bairro. Impulsionador, no passado, de um projecto cultural para a sua terra natal-Matalana, Marracuene, retoma-o, logo que a guerra termina, criando-se assim a Associação do Centro Cultural de Matalana, de cujo grupo fundador Malangatana faz parte, sendo actualmente presidente da Direcção.
Em 1996 e 2004, publica dois livros de poemas que reúnem a sua obra poética desde os anos sessenta. O último é ilustrado com vinte e quarto desenhos inéditos. A sua vida e obra tem sido objecto de vários filmes e documentários, estando representado em vários museus, por todo o mundo, bem como, em inúmeras colecções particulares.
De Maputo para o Mundo
Além de Moçambique, Malangatana tem a sua obra exposta na África do Sul, Angola, Brasil, Bulgária, Checoslováquia, Cuba, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Grã-Bretanha, Holanda, índia, Islândia, Nigéria, Noruega, Paquistão, Portugal, RDA, Rodésia, Suécia, URSS e Zimbabwe. Depois de ser ter tornado artista profissional em 1961, realizou inúmeras exposições individuais em Moçambique e ainda na Alemanha, Áustria, Bulgária, Chile, Cuba, Estados Unidos, Espanha, Índia, Macau, Portugal e Turquia.
O artista tem murais pintados ou gravados em cimento em vários pontos de Maputo e na cidade da Beira, na África do Sul, no Chile, na Colômbia, nos Estados Unidos da América, na Grã-Bretanha, na Suazilândia, e na Suécia. A sua obra, para além dos murais e das duas esculturas em ferro instaladas ao ar livre é composta por Pintura, Desenho, Aguarela, Gravura, Cerâmica, Tapeçaria, Escultura e encontra-se (exceptuando a vastíssima colecção do próprio artista) em vários museus e galerias públicas, bem como em colecções privadas, espalhadas por várias partes do Mundo.
Prémios
Malangatana, foi galardoado com a medalha Nachingwea, pela sua contribuição para a cultura moçambicana, e foi investido Grande Official da Ordem do Infante D. Henrique. Em 1997 foi nomeado pela UNESCO "Artista pela Paz" e recebeu o prémio Príncipe Claus. No ano passado, recebeu o titulo de "Doutor Honoris Causa", pela universidade de Évora e a condecoração, atribuída pelo governo francês, de "Comendador das Artes e Letras".Malangatana também foi um dos poucos estrangeiros a ser nomeado membro honorário da academia de artes da RDA.
A 6 de Junho de 2006, é homenageado em Matalana por ocasião do seu 70.º aniversário, sendo condecorado pelo Presidente da República de Moçambique com a Ordem Eduardo Mondlane do 1.º Grau, o mais alto galardão do país, em reconhecimento do trabalho desenvolvido não só nas artes plásticas mas também como o grande embaixador da cultura moçambicana. Nessa mesma data foi lançada a Fundação Malangatana Ngwenya, com sede em Matalana, sua terra natal. Em 2007, foi condecorado pelo governo francês com a distinção de Comendador das Artes e Letras.
http://noticias.sapo.mz/especial/malangatana/
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