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QUEM SOMOS







O Casa Amarela 5B -Jornal Online surge da vontade de vários artistas, de, num esforço conjunto, trabalharem no sentido de criar uma relação forte com o público e levando a sua actividade ao seu conhecimento através do seu jornal online.

Este grupo de artistas achou por bem dedicar o seu trabalho pintorNelsonDias, https://www.facebook.com/pages/Nelson-Dias/79280420846?ref=hl cuja obra terá sido muito pouco divulgada em Portugal, apesar de reconhecido mérito na banda desenhada, a nível nacional e internacional e de várias vezes premiado em bienais de desenho e pintura.


Direcção e coordenação: Maria João Franco.
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Saturday, March 24, 2018

MIGUEL FRANCO dramaturgo .alguns detalhes








Agradecemos à Dra Graça Teixeira e ao Dr. Flávio Botton o empenho posto no estudo da obra de Miguel Franco. Mais informações e fotos em www.miguel-lino.blogspot.com Comecemos por fixar alguns detalhes biográficos de Miguel Carlos Franco, mais conhecido por Miguel Franco (1918-1987). Nascido em Leiria, então uma pequena cidade de província, nela exerceria a sua profissão de gerente comercial, a par das suas atividades de homem de cultura, contista, ensaiador, dramaturgo, ator, e diretor artístico. Desde cedo se distinguiu nas letras e, ainda aluno da Escola Comercial e Industrial de Leiria, já se fazia notar pelos seus dotes de escrita. Mas foi logo em criança que, nos largos da sua cidade, assistindo aos espetáculos circenses de companhias ambulantes, o gosto pelo palco se manifestou. A sua rua era o cenário ideal para a companhia que aos oito ou nove anos de idade já criara, recorrendo aos amigos para com eles “apresentar” números de teatro, fantoches e circo. Em adolescente, e tendo-lhe sido reconhecidas características que fariam dele um “homem de teatro”, foi levado a ingressar num grupo amador existente num bairro periférico da cidade, onde desde logo se revelou como ator, chegando a diretor artístico. A atividade na área do teatro viria pois a consolidar-se em Leiria, através da entrada para o Grupo Dramático Miguel Joaquim Leitão e, mais tarde, para o Grupo de Teatro Miguel Leitão (ambos de teatro amador), no qual colabora durante trinta anos, arrecadando vários prémios. Numa cidade de cariz provinciano, muito fechada, onde ainda se respirava muito do ambiente descrito por Eça n‘O Crime do Padre Amaro, Miguel Franco toma a seu cargo a dinamização de várias iniciativas culturais, devendo-lhe Leiria muito dos seus períodos áureos de atividade teatral. Destacamos, como exemplo, em 1972 os Festivais de Arte de Leiria. No seu âmbito, conseguiu levar à cena a peça de Ésquilo, Os Persas, tendo por cenário o magnífico castelo medieval da urbe, um dos mais belos da Europa (nesse local, levaria, mais tarde, com grande sucesso, uma peça vicentina). Em 1973, já no espaço do novíssimo Teatro José Lúcio da Silva, edifício oferecido ao município por este benemérito comendador leiriense, emigrado no Brasil. Miguel Franco apresentou então, a partir de uma peça de Strindberg, remodelada e atualizada, o texto A Dança da Morte em Doze Assaltos. Em 1974, dirigiu a companhia Os Bonecreiros – Teatro Laboratório de Lisboa na peça A Mosqueta, do italiano Ruzanté. Em Maio desse mesmo ano, seria a vez de apresentar História do Jardim Zoológico de Edward Albee, e já após Abril de 74, faria subir ao palco a peça de B. Brecht, O Terror e a Miséria do III Reich, resultado da sua colaboração na companhia do Teatro da Cornucópia, uma companhia de teatro experimental de Lisboa. Para além do teatro, muitas foram as atividades culturais promovidas por Miguel Franco a bem da sua cidade. Lembramo-nos, por exemplo, de um notável ciclo de “Conversas”, para o qual convidou nomes bem conhecidos: Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, José Augusto-França, entre outros. O apelo da sétima arte também se fez sentir e, em 1963, estreia-se em duas curtas-metragens onde ensaia os seus dotes de ator cinamatográfico. Após essa “experiência”, iniciou uma série de presenças em filmes nacionais e estrangeiros, dos quais citamos apenas alguns: 1963, O Crime da Aldeia Velha de Manuel de Guimarães; em 1964, Triângulo Circular de Pierre Kast; em 1965, Domingo à Tarde de António Macedo (filme levado ao Festival de Berlim); em 1966, Uma Abelha na Chuva de Fernando Lopes; em 1970, O Cerco de António da Cunha Telles (filme presente a concurso nos festivais de Cannes e de San Sebastian, com Miguel Franco no principal papel masculino); em 1978/9, Manhã Submersa de Lauro António (da obra homónima de Vergílio Ferreira); em 1983, Vidas de A. Cunha Telles. Vivendo em Leiria procurava frequentemente Lisboa, onde se encontrava com pessoas de renome ligadas às letras – Bernardo Santareno, Luís Francisco Rebello, Romeu Correia, Urbano Tavares Rodrigues, e muitos outros. Acompanhava-os em palestras e mesas-redondas, falando, naturalmente, de teatro. Em março de 1970 está presente na reunião para a elaboração do projeto dos estatutos de uma futura associação portuguesa de escritores, junto com o escritor e jornalista Sousa Tavares, o romancista Carlos Oliveira, o intelectual António Quadros, sob a presidência de Luís Francisco Rebello, acompanhado do futuro Nobel José Saramago, e do académico Óscar Lopes. Mais tarde, em janeiro de 1974, entra para a Comissão Cultural Literária, já como elemento ativo da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores. Da obra de Miguel Franco temos notícia de uma comédia regional inédita, datada de 1948, intitulada Rosa Benedita. Já em 1957, escreve um texto “em redondilha de sabor vicentino” que o autor denominaria de Prólogo, e que antecedia as representações da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, incluída no repertório do Grupo de Teatro Miguel Leitão. Aliás, o fundador do teatro português inspiraria Miguel Franco e levá-lo-ia, nas suas próprias palavras, a procurar “essa resina que escorre, seivosa e corada, dos saborosos autos de Gil Vicente”. Em 1962 faz uma incursão pela poesia, tendo chegado até nós o livro Quinta feira e outros poemas, em edição do autor, cuja temática remetia em grande parte para o mar, a mulher e a cidade. Seria, no entanto, em 1963, com a publicação da obra a que adiante nos referiremos com mais detalhe, O motim, que alcançaria uma projeção nacional, consolidada, dois anos mais tarde, com a peça Legenda do Cidadão Miguel Lino, objeto do prémio Almeida Garrett, atribuído pelo Ateneu Comercial do Porto. Nela volta a uma temática de cariz histórico, pouco trabalhada na nossa dramaturgia nacional: as invasões francesas. Publicou, em 1974, Visita muito breve, peça em um ato, difundida pela então Emissora Nacional que versava a problemática da emigração. Inédita permanece ainda a sua peça Capitão Durand e, de uma encomenda da Secretaria de Estado da Cultura viria a resultar, nos inícios de 1979, e ainda para a Rádio, a peça O Capitão de Navios, considerando-a Miguel Franco apenas “uma peça para divertimento”. Como contista, deixou-nos o livro Passeio do Reno, onde inclui o conto “Cecílio Flor”, baseado num pobre cego, seu conhecido, tocador de ocarina nas ruas da cidade, e que, mais tarde, em A Legenda, aproveitaria para dar corpo à personagem “Cecílio”. Portugal, anos 60 - o papel da censura A abordagem ao texto dramático O motim, e o que viria a acontecer imediatamente após as primeiras representações desta peça, não ficariam claros sem uma referência ao Portugal dos anos 60. Década de profundas mudanças, verificar-se-ia logo no início da mesma uma lenta viragem à Europa, e novos “ventos” viriam influenciar os quadrantes da sociedade e da cultura. Procurado por milhares de turistas, há, claramente, no país, uma aculturação que se intensifica com o fenómeno da emigração. Com a saída em massa de mão de obra masculina, o mercado de trabalho abre-se às mulheres, dando-se uma feminização da força laboral, o que em muito contribuiu para uma mudança de mentalidades na visão do papel das mulheres na sociedade, começando estas a ganhar voz. Marcante foi também a movimentação de milhares e milhares de jovens que, por via da vida militar ou escolar, entreteceram e fomentaram uma forte rede de hábitos e costumes, abrindo-se, por sua vez, a novas ideias e ideais. Ainda em 60, e na educação, registou-se um acréscimo significativo da população escolar desde o básico ao superior, embora não fosse o suficiente para se alcançar a situação sócio-cultural (e económica) de quase todos os países da Europa Ocidental. No entanto, a classe média aspirava já a outros níveis de oferta, quer no que respeita à área social, quer à cultural, verificandose, nesta década, um aumento acentuado no número de museus e bibliotecas, com uma duplicação no número de leitores. O mesmo aconteceu com a imprensa escrita: o número de jornais e publicações disparou, num país em que os hábitos de leitura se fixavam abaixo do desejável. Quanto ao audiovisual, a década de 60 viu aparecer a televisão, que rapidamente se impôs no dia a dia dos portugueses, alterando os seus hábitos sociais e familiares. Agora, dentro dos lares, outras realidades surgiam, despertando outros interesses e necessidades. Não poderíamos falar desta década sem mencionar a situação políticomilitar que o país vivia, desde 1961, com o eclodir da chamada “guerra colonial”. Iniciada em Angola e rapidamente alargada a todas as outras “províncias ultramarinas”, esta realidade condiciona toda a vida dos portugueses e será ainda motivo de um fortalecimento da censura em todas as áreas. Esta presença censória, após um alívio sentido no período do pósguerra, com a derrota do nazismo-fascismo e a subsequente crítica aos poderes ditatoriais, volta a acentuar-se na vida cultural, e, muito principalmente, sobre a produção dramática, fazendo-se sentir na recorrente proibição de peças. Em 1962, por exemplo, o dramaturgo Luís de Sttau Monteiro viu proibida a sua peça Felizmente Há Luar!, e a própria tipografia, onde a segunda edição se compunha, foi completamente queimada e vandalizada, tendo-se mesmo concretizado a detenção dos tipógrafos. Nem a “primavera marcelista”, com o seu Exame Prévio, traria a liberalização tão ansiada sobre o que se escrevia ou o que se dizia. Apesar de tudo, bem a meio da década, em março de 1965, o ano parecia apresentar bons auspícios: o reaparecimento da Companhia Nacional a trabalhar no Teatro da Trindade, duas novas companhias teatrais, a abertura de mais uma casa de teatro (o Teatro Villaret, em homenagem a esse grande homem da palavra, João Villaret) e novos espetáculos. Até a companhia de Amélia Rey-Colaço, por força do terrível incêndio de 2 de dezembro do ano anterior (1964), o qual arrasou o espaço que ocupava, o Teatro Nacional D. Maria II, voltava a trabalhar, instalada agora no recém-recuperado Teatro Avenida. E, bem conscientes da força interventiva do teatro, surgem várias companhias dramáticas formadas por gente jovem com vontade de fazer teatro de autor e teatro de encenador, isto é, um teatro alternativo ao meramente comercial e para um público mais exigente, embora muito centrado na capital. No resto do país, salvo algumas digressões de companhias sedeadas em Lisboa, apenas graça a grupos de teatro amador, entre os quais o já referido Grupo de Teatro Miguel Leitão, se ia mantendo viva a presença do teatro em cidades e vilas. Desde sempre o teatro se mostrou como um meio de revelar angústias, medos, ansiedades, alegrias e revoltas. Em vários países e em várias épocas, a censura sempre atuou sobre a capacidade que este tem de fazer agir, ou de se fazer eco da sociedade, possibilitando um pensar coletivo. Consciente disto, em Portugal, e através da censura, o regime mantinha proibidos de serem representados nomes como o de Bertold Brecht, Peter Weiss, Jean Paul Sartre, Arthur Miller; mas também obras de Moliére, B. Shaw, Shakespeare, e até mesmo de Gil Vicente foram impedidas de subirem ao palco. Seria, pois, difícil escapar O motim à força desta ação censória. Escolhida para abrir a época de 65, da reputada companhia Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro, após a catástrofe a que já aludimos, ver-se-ia a mesma, ao fim de cinco dias de representação, banida do repertório e o nome de Miguel Franco proibido de aparecer em toda e qualquer publicação nacional (na verdade, já não viria nesse ano a ser mencionado num artigo intitulado “Balanço do Ano Teatral”). Procuradas as causas para tal arbitrariedade, percebeu-se que o censor teria considerado que a mesma continha uma forte instigação à revolta popular; sabemos, porém, que também as ligações e ideologias políticas seguidas pelos autores eram razão suficiente para que os mesmos fossem impedidos de verem concretizadas em palco as suas obras. Contra esta absurda decisão, reagiram com veemência os intelectuais da época, enviando ao então chefe do governo, Prof. Marcelo Caetano, o manifesto “Protesto contra a proibição da peça O motim”, lembrando, entre outros considerandos, os malefícios que outrora a censura inquisitorial trouxera à arte dramática. Porém, sem quaisquer resultados (Miguel Franco veria, também, a sua peça Legenda do Cidadão Miguel Lino ser alvo da mesma censura; esta só seria representada após Abril de 74). Voltando a O motim, os claros paralelismos que a peça apresentava foram, sem dúvida, a razão principal de tão radical banimento. Miguel Franco tinha “ousado” colocar o público perante duas leituras possíveis da sua obra: a da própria História e a da revolta de um povo contra o poder totalitário. Porto, 1757 - o motim Terá sido a partir de uma efeméride lida num jornal, que Miguel Franco trabalhou a ideia que viria a resultar nesta sua obra O motim. Numa conversa com o seu amigo, o dramaturgo Bernardo Santareno, pediu-lhe que fosse ele a pegar no tema; porém, consciente das potencialidades de Miguel Franco, Santareno logo o entusiasmou a concretizar, ele mesmo, a sua escrita. Mergulhou então numa procura de documentos coevos e testemunhos literários (por exemplo, Um motim há cem anos, do escritor Arnaldo Gama), que o levassem a perceber os acontecimentos de 1757, passados no Porto, cidade já então conhecida pelo seu indomável espírito liberal. É fundamental referir que a tradição económica desta região assentava há muito na produção vinícola e no comércio e profissões que se desenvolviam à sua volta: armazenistas, tanoeiros, vinhateiros, taberneiros, mercadores, exportadores, barqueiros, e até corporações religiosas. Em meados do século XVIII já estas actividades tinham alcançado um forte desenvolvimento com as exportações do vinho do Porto, muito principalmente para Inglaterra. No entanto, a pressa na obtenção de lucros fáceis resultou numa crescente adulteração da qualidade deste produto, o que levou a que os principais clientes, os ingleses, o tivessem considerado prejudicial para a saúde; em consequência, rapidamente os preços baixaram, as exportações diminuíram, resultando num descalabro económico para toda a região, o que viria a agravar as vicissitudes já sentidas em anos vinícolas anteriores. A vulnerabilidade reconhecida a uma área que devia ser protegida e o quase monopólio mercantil exercido pelas feitorias inglesas levaram a que fosse solicitada a intervenção do próprio rei, D. José I, e do seu Secretário de Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde Marquês de Pombal. A Lisboa chegou então Frei João de Mansilha, o qual expôs a necessidade de se criar uma Companhia Geral que fizesse face à crise que se vinha abatendo na produção e comércio do vinho da região. Foi de imediato aceite esta pretensão, e em 31 de Agosto de 1756 instituía-se a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, à qual foram conferidos desde logo poderes majestáticos. Não passaria muito tempo até que se fizessem sentir as primeiras manifestações de todos os que se sentiam lesados pela atuação da Companhia, quando esta quebrou com hábitos antigos de relação com o vinho e os privilégios detidos até então - na senda dos princípios mercantilistas de proteção e monopólio que caracterizaram a gestão de Pombal. Os interesses instalados foram fortemente lesados: na cidade, a Companhia fechou nove em cada dez tabernas, (havia cerca de 600 a 1.000 tabernas por essa altura) apropriando-se do monopólio da comercialização e exportação de todos os vinhos; só ela podia vender vinho a retalho na cidade e arredores, só ela podia exportar para o Brasil as aguardentes, os vinhos e o vinagre. O mau estar instalado era propício a revoltas contra a situação imposta, pois as medidas tomadas tinham, em pouco tempo, arruinado os pequenos proprietários e os seus empregados. Querendo afirmar o seu protesto contra este estado de coisas, e aproveitando o clima de euforia que se tinha vivido nos anteriores dias de Entrudo, o povo da cidade juntou-se em bandos, nessa quarta-feira de Cinzas, 23 de Fevereiro do ano de 1757. Mulheres, rapazio e, segundo o historiador Lúcio de Azevedo (1990:131), “vadios, soldados, colarejas, meretrizes, escravos, a ralé da cidade” deslocaram-se até à casa do Juiz do Povo, o alfaiate e taberneiro José Fernandes da Silva, a fim de afirmarem o seu protesto. Para a História ficaram os seus nomes, que dão bem a imagem das suas profissões e do seu estatuto social: “Negres”, “Maria Pinta”, “Carinha de Meio-Tostão”, “Estrelada”, “Cheta”, “Brejeira” e tantos outros. Embora contrariado, o Juiz seguiu “em cadeirinha” para casa do Chanceler Bernardo Duarte de Figueiredo, a fim de lhe ser apresentado um requerimento, anteriormente elaborado, e que pedia a extinção oficial da Companhia. Amedrontado com a multidão e a fim de acalmar os ânimos, este anuiu, decretando o retorno à situação que vigorava antes da fundação da mesma. Seguiu então o povo para casa do Provedor da Companhia, Beleza de Andrade, a qual, no excesso da euforia, foi assaltada, tendo sido alvo de avultados prejuízos. Deu-lhes porém resposta um criado, atirando uns tiros de bacamarte, o que exaltou a multidão que vandalizaria os próprios escritórios da Companhia, enquanto era chamado o Corpo da Guarda, para dominar a situação. Assim aconteceu e pelas quinze horas já tudo se mostrava calmo, saindo à rua as tradicionais procissões de Quarta-Feira de Cinzas. Tudo parecia ter voltado ao normal, mas para Lisboa seguiria o relato de tudo o que se passara, em carta assinada pelo Senado da Câmara do Porto. Dias depois, e perante o espanto geral da população, Carvalho e Melo fez deslocar para a cidade um Juiz da Alçada com “ilimitada jurisdição” (cf. Sentença: 2), a fim de proceder à devassa sobre os tumultos, ou arruaça, como muitos lhe chamaram. O escolhido foi o Desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos, homem dos mais ricos da região do Douro e que detinha no Porto vários cargos de nomeada; para escrivão, viria seu filho, José de Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo, membro reconhecido de várias academias e associações literárias e científicas, embora tivesse passado à História como um homem cruel, de poucos ou mesmo nenhuns escrúpulos, e de grande ambição. O que não passara de uma “arruada” fora visto como um verdadeiro motim e D. José I emitiria mesmo uma carta, referindo que quaisquer impedimentos à execução das ordens régias seriam considerados delito de lesa-majestade. A chamada “revolta do vinho” ou “revolta dos borrachos” (cf. Azevedo, 1990:131), onde segundo alguns elementos afetos a Pombal estaria mão de jesuítas ou de grandes negociantes ingleses e portugueses, resultou num processo que sentenciou 424 homens e 54 mulheres do povo, por crime de alta traição e de lesa-majestade da primeira cabeça. Foi um ato absolutamente desproporcionado, que atingiu “gentalha esfrangalhada e piranga” (Camilo Castelo Branco, 1982:136), a qual foi submetida à tortura, despojada dos seus bens, separada de filhos e cônjuges, tendo muitos sido açoitados, enviados para o degredo ou mesmo mortos na forca. A sentença da Alçada foi publicada no dia 12 de Outubro desse mesmo ano e dois dias depois tinham sido enforcados treze homens (latoeiros, tanoeiros, criados…) e quatro mulheres (uma que se encontrava grávida, seria executada logo após o nascimento da criança). A cidade, também ela condenada, suportou pesadas penas que se traduziram em largos meses de sofrimento, uma vez que, para que ficasse de exemplo a todos os que ousassem opor-se à vontade de Sebastião José de Carvalho e Melo, foi ordenado que se expusessem as cabeças decepadas e os corpos esquartejados dos enforcados por toda a cidade, mas, muito principalmente, nas ruas onde se julgava ter tido início o “motim”. Algum tempo depois, e por questões de saúde pública, transferiram-se os mastros para as entradas da cidade onde ficariam durante todo o inverno. Também durante cinco longos meses a população mais desfavorecida teve de dar aboletamento a cerca de 2.300 homens dos batalhões deslocados para a cidade, com todos os prejuízos que daí advinham. O motim Foi, como já referimos, da leitura desta efeméride que Miguel Franco partiu para a escrita de O motim. O autor encontrou, claramente, paralelismos entre a prepotência exercida sobre o povo na centúria de setecentos e a que subjugava Portugal, na década de 60, em pleno século XX. Procurando uma certa distanciação temporal, a fim de a peça ultrapassar as apertadas malhas da censura, Miguel Franco aspirava porém que o público reconhecesse uma forte analogia presente no enredo: o exercício de um despotismo pela força das armas e a subjugação de um povo por imposição de um enclausuramento económico, cultural e ideológico. Foi este paralelismo entre o poder absolutista de Carvalho e Melo e a ditadura do Estado Novo que levou a que a peça fosse retirada e proibida. Mário Castrim, cronista e crítico de teatro, escreveria em 1975 que O motim teria sido “uma carta com endereço bem legível e que não enganava ninguém”. Na verdade, partindo dos referentes históricos que suportam as figuras dramáticas e demais elementos que as contextualizam, Miguel Franco (re)constrói nesta sua obra dramática os acontecimentos vividos em 1757, orientando o público para a leitura da sua “parábola”. Na estrutura externa deste texto dramático deparamos, logo no seu início, com a transcrição da notícia da efeméride já por nós referida, e lida por Miguel Franco no jornal Primeiro de Janeiro, bem como uma passagem da obra Recordações, do viajante e cronista Jacome Ratton, na qual este se reporta aos acontecimentos de 1757, segundo o que “pessoas de crédito” lhe teriam narrado no final desse ano, aquando da sua passagem pelo Porto. Uma marca espácio-temporal, no final da nomeação das personagens, refere: “CIDADE DO PORTO, Ano de 1757”, anulando qualquer dúvida sobre o espaço e o tempo que irão iniciar o processo comunicativo. A peça organiza-se em três atos. Em palco, “uma adega atabernada”, a taberna do Justino (remetendo para homem justo) que irá servir também de cenário ao Tribunal da Alçada, remetendo para a importância do comércio do vinho em todo este processo. A inclusão de figuras significadoras, apoiando as figuras representadoras (estas de cariz histórico e factual), é fundamental para o reconhecimento dos factos, do clima que se vivia e da mensagem a passar. O primeiro personagem a entrar em cena é o Profeta, que, tal como o nome indica, deixará antever, ao longo das suas falas, a tragédia que se prefigura. PROFETA – Então eu vou cantar…às desgraças do Porto!... VOZES – Acabaram-se as desgraças! […] PROFETA (olhos tristes) – Acabaram-se?! […] PROFETA (mais profundo) - …Acabaram-se! […] TOMÁS PINTO (dando com o Profeta) – Então vossemecê fica por aí? PROFETA (levantando lentamente os olhos) – Eu fui o primeiro a cair! Os paralelismos presentes na obra comprovavam-se na escolha das personagens, nas marcas de tempo, de espaço e na própria ação. Atentemos em alguns: Personagens d’ O motim Registos na Cópia da Sentença Estrelada Custódia Maria a Estrelada Negres António de Sousa de alcunha o Negres Cheta – “moinante, embrcado” José Ribeiro Oleiro, e Mariheiro, de alcunha o Cheta. Maria Pinta, mulher do Negres Maria Pinta, […] casada com […] António de Sousa o Negres. Advogado Nicolau Araújo Bacharel Nicolau da Costa Araújo Luís Beleza de Andrade, Vereador da Câmara do Porto e Provedor da Companhia Provedor […] Luís Beleza de Andrade José Fernandes da Silva, Juiz do Povo, o “Lisboa José Fernandes da Silva de alcunha o Lisboa Curioso, e como se de uma homenagem se tratasse, é o facto de Miguel Franco ter tido a preocupação de lembrar muitos outros nomes dos que foram sentenciados e que, não participando enquanto personagens, são por estas nomeados. Mas continuemos com mais alguns paralelismos, consubstanciados a partir das didascálias explícitas e implícitas (sublinhados nossos): Paralelismo de tempo: Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei: “…dia em que concorre toda a vizinhança desta cidade a ver a procissão dos Terceiros de S. Francisco…”. N’ O motim (1.º Ato, p. 34, 35): JUSTINO – […] Depois da procissão, … (Ouve-se um sino, concitando os fiéis para a procissão de S. Francisco). Paralelismo de espaço: Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei de 25 de Fevereiro de 1757: “… à porta do mesmo Chanceler que serve de Governador fizeram diliga para lha entrarem nas casas,…”. N’ O motim (1.º Ato, p. 20): JUSTINO (indo à porta) – Estes estavam a dizer que está tudo à porta do Governador… Paralelismo de factos ou acontecimentos: Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei: “…ele [o Juiz do Povo] se lhes escusou, com o pretexto de doente, e lhe mandaram buscar uma cadeirinha e metendo-o nela continuaram com maiores alaridos…” N’ O motim (1.º Ato, p. 21): (O povoléu abre alas para deixar passar o grupo que traz numa cadeirinha o Juiz do Povo, …”) Da Carta do Senado da Câmara do Porto ao Rei: “…chegados à sua porta […] romperam no excesso […], fazendo forma para lhes entrarem na mesma casa, e disparando-se de dentro dois, ou três tiros […]”. N’ O motim (1.º Ato, p. 31, 32): CAETANO […] – Já há tiros! Já há tiros! CAETANO (continuando) - …Estava o povo em frente da Companhia, a clamar e aos vivas…; de repente abre-se uma janela do Provedor, […] e dois vultos de bacamarte apontado, dispararam contra a gente! Na procura de um plasmar da situação que o marcou tão profundamente, Miguel Franco vai ao ponto de incluir no seu texto a transcrição de passagens da própria Sentença, tendo escolhido a descrição das punições aos considerados “cabecilhas”. A presença de tão grande número de paralelismos factuais leva-nos a pensar na possibilidade de ter sido Miguel Franco influenciado pelo chamado “teatro-documento”, uma vez que se apoiou no uso documental da História, tendo, como atrás dissemos, transcrito para a fala do “Oficial de Justiça”, no 3.º ato, parte do texto da Sentença sem qualquer modificação. Estamos pois em presença de um “drama histórico”, uma construção ficcional apoiada em situações que a memória coletiva registou, e que compromete, restringe ou limita o que à partida seria essencialmente da esfera da imaginação. Concordamos com Eugénia Vasques, quando esta refere ser Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Número 01 Jul-Dez 2011 119 teatro histórico o que procura relacionar ”de modo inovadoramente dialéctico, uma verdade histórica com uma verdade dramática, havendo, neste caso, a necessidade de uma investigação rigorosamente documentada” (1998:82). Por outro lado, em Combate por um Teatro de Combate, Luís Francisco Rebello data de 1963, 1964 e 1965 (ano da representação de O motim) as primeiras peças alemãs a que se convencionou designar por “teatrodocumento”, isto é, peças documentais (cf. 1977:112). Weiss, ainda citado por Rebello, propôs para o teatro-documento, a “capacidade de construir, a partir de fragmentos da realidade, um exemplo utilizável” (1977:114). Pensamos que Miguel Franco superou o conceito, indo mais além da própria realidade; utilizou um documento histórico não como um mero dado documental, mas como matéria teatral, transformando-o em algo de artisticamente poético. Bibliografia AZEVEDO, Cândido. Mutiladas e Proibidas: para a História da Censura Literária em Portugal no Tempo do Estado Novo. Lisboa: Caminho,1997. Carta da Câmara do Porto ao Rei, de 25 de Fevereiro 1757. CASTRIM, Mário. O Fascismo não gostou deste motim. Diário de Lisboa. Lisboa, 16 Setembro 1975, p.15. FRANCO, Miguel. O motim. Coimbra: edição do autor, 1963. FRANCO, Miguel. Legenda do cidadão Miguel Lino. Porto: Editorial Nova, 1973. GAMA, Arnaldo. Um motim há cem anos. Porto: Livraria Tavares Martins, 1935. REBELLO, Luís Francisco. Combate por um teatro de combate. Lisboa: Seara Nova, 1977. Sentença da Alçada, que El Rey Nosso Senhor mandou conhecer da Rebellião sucedida na Cidade do Porto em 1757. Lisboa: Oficina de António Rodrigues Galhardo, Impressor da Real Mesa Censória, 1786. VASCONCELOS, Ana Isabel. O drama histórico: entre Clio e Tália. Actas Colóquio Literatura e História – para uma prática interdisciplinar. Lisboa: Graça Maria Teixeira- Mestre em Estudos Portugueses Interdisciplinares pela Universidade Aberta - Lisboa Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Número 01 Jul-Dez 2011 120 www.todasasmusas.org

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